O VEREADOR DANTAS

Para de querer se auto-apresentar, Dantas! Queremos apenas mostrar um pouco da sua história de vida, uma história do personagem José Deodoro Dantas, ou simplesmente Dantas, o vereador Dantas: falastrão, abusado e extremamente astuto (vai dizer que não, Dantas?), também é dono de uma invejável memória. Não obstante, apesar de toda essa leva de predicados, Dantas é quase analfabeto (vocês acabam de ver aí em cima!)

Conforme ele mesmo já escreveu, nosso personagem elegeu-se vereador. A imensa legião de admiradores que conseguiu arrebanhar, principalmente nas hostes das comunidades mais humildes do município, garantiu-lhe uma folgada margem de votos que não só assegurou a própria eleição, mas também ajudou dois outros companheiros de partido político a galgarem o mesmo status de representantes do povo na casa de leis daquela pequena cidade interiorana.

Os atributos de Dantas, além de lhe escancararem as portas das camadas mais humildes da população de Rio das Cinzas e por isso lhe proporcionarem o gozo das benesses parlamentares, fazem a alegria do povo riocinzense em geral, incluídos os colegas da edilidade, os demais políticos da cidade e da região – independentemente da cor partidária – os homens da imprensa (especialmente), a comunidade acadêmica... enfim, todo mundo. Isso tudo porque Dantas é um impagável produtor de episódios incomuns, via de regra associados à sua cultura pouco desenvolvida.

Dizem muitos que Dantas sabe tirar proveito desses episódios, e que a maioria deles é produzida de modo deliberado. É possível, e Dantas não passa recibo. Quando questionado, faz ares de monge beneditino, olhar bovinamente perdido no espaço e desconversa. Mas poucas pessoas se preocupam com isso. Quase todo mundo quer mesmo é se divertir com as patacoadas de Dantas e não é raro o fato dele ser especialmente provocado para produzir mais uma pérola. Aliás, por falar em pérola, recentemente circulou, tanto nas altas quanto nas baixas rodas da sociedade riocinzense, um remoque em que se afirmava estar Dantas parecido com uma ostra. Ao perguntarem o porquê da parecença, a resposta esclarecia: é porque, quando ele se abre, sempre aparece uma pérola.

Como seria de esperar, Dantas tem origem humilde. Sua esposa também: humilde no sentido econômico e humilde no sentido social também. Pouco aparece nos eventos de que o marido participa e jamais foi vista com modos ostensivos em alguma ocasião. O lar de Dantas também é humilde, apesar da relativa importância dele – pelo menos no aspecto oficial – na sociedade riocinzense. Talvez por conta disso Dantas não é um presunçoso. Antes da eleição para a vereança, era motorista de taxi. Poderia ter continuado na função, o exercício do cargo eletivo dava-lhe essa faculdade. Preferiu largar o volante, pelo menos em termos profissionais. Decidido a fazer carreira política, resolveu que o melhor caminho seria a dedicação integral à arte de representar o povo. Era essa uma das razões pelas quais se desconfiava da sinceridade de Dantas quando ele se saia com uma de suas pérolas.

O ofício de taxista concorreu em muito para a popularidade de Dantas. E para a sua eleição, logicamente. Fazendo as corridas e distribuindo as pérolas de dizeres e procederes inusitados e engraçados, nosso personagem foi criando a fama de pessoa agradável, de ‘gente fina’ ou ‘sangue bom’, como se dizia nos meios populares.

Vamos então contar algumas ‘bola fora” como você mesmo diz, Dantas...


Dantas e os percalços de campanha
Dantas se encontrava em plena campanha eleitoral. Era a sua primeira eleição. Na época, as regras da propaganda política eram mais flexíveis, os candidatos podiam usar várias opções de divulgação hoje proibidas. Dantas conseguiu o apoio logístico e financeiro de uma empresa do município e estava radiante. Chegou eufórico ao comitê de campanha e comunicou o coordenador do partido:
- Viva! Podem me dar os parabéns! Consegui uma ajuda muito importante para a campanha. O Fernandes, da Móveis Tupamaro, vai patrocinar três hot-dog da minha candidatura pra instalar na cidade. Só vou precisar de ajuda pra montar eles. Quer dizer, fazer um desenho, essas coisas...
- Como assim, três hot-dog?
- É sim. Três hot-dog pra colocar em lugares especiais. Vamos colocar um deles no trevo da entrada da cidade, outro perto do centro, naquele espaço vazio perto da Delegacia e outro em frente do campo de futebol...
O coordenador, que a essa altura já percebera a mancada, deu trela:
- Parabéns, Dantas. É realmente uma ajuda muito importante. Mas me diga: quem vai comer esses hot-dog que você arrumou?
- Como assim, comer os hot-dog?
- Você sabe o que é hot-dog, Dantas?
- Claro que sei. São aqueles painéis enormes, para propaganda.
- Você está se referindo a out-door, Dantas. Hot-dog é cachorro quente.

Dantas e o nepotismo
No exercício do mandato, Dantas resolveu contratar um assessor. Pago pela Câmara de Vereadores, claro. O problema é que o referido assessor era primo do Secretário de Administração da Prefeitura. O presidente da Câmara de Vereadores alertou:
- Cuidado, Dantas. É melhor você não nomear esse cara. Não tenho nada contra o Alceu, mas ele é primo do Secretário de Administração. O Ministério Público pode vir pra cima de você por causa da Lei do Nepotismo e você vai se incomodar.
Dantas procurou se justificar alegando desconhecer o parentesco:
- Mas eu nem sabia que o Alceu era aprimorado com o Secretário!!!

 

Dantas explica o doping

Uma mocinha da cidade começou a se destacar como atleta na modalidade de salto em distância. Ainda em idade escolar, a menina de doze anos foi incentivada pelos professores e também pelos pais e parentes para se esmerar nos treinamentos com vistas a uma promissora carreira no esporte. Algumas vitórias em competições escolares regionais e estava armado o cenário da glória. Nas rodas escolares-sociais-populares-familiares de Rio das Cinzas a moçoila passou a ser paparicada onde fosse ou onde estivesse. Começaram a surgir parentes nos lugares mais inusitados. Todos queriam conhecê-la, abraçá-la, tirar fotografias, o escambau. Tantos mimos e afagos acabaram por abalar a menina, mas os esforços para transformá-la em atleta não arrefeceram.

Sabem como são os pais, não é? Pois então, os da menina Anabela não eram diferentes. Cuida da menina, leva a menina a treinar, um curso de natação não seria bom?, não seria interessante procurar um treinador mais experiente?, que tal tomar algumas vitaminas?, o farmacêutico disse que o remédio tal é bom para fortalecer os músculos!, vamos mandá-la para a casa da tia Eufrásia em São Paulo para ela treinar num centro mais avançado?, e assim a vida seguia por dilemas certos e promessas incertas na antes pacata Rio das Cinzas.

Por essas e outras a pequena Anabela acabou inscrita para participar de uma competição de nível interestadual para atletas em fase escolar, a ser realizada na capital. Treinamentos intensificados, índices melhorados – e dê-lhe vitaminas! –, Anabela certamente teria uma participação exemplar. E lá se foi a comitiva riocinzence para a capital. Não sem um grande estardalhaço. Boletins e releases para a imprensa local, regional, estadual e nacional – só não foi para o NY Times porque o diretor do colégio achou um exagero – e uma grande perda de tempo, afinal de contas! E, ah! Não podia faltar a figura do Vereador Dantas, convidado especial da delegação com a importante função de assessor especial de relações públicas!

De repente! Isso mesmo, de repente! De repente, a surpresa! Antes da competição, o susto, a estupefação, a perplexidade, a indignação: Anabela foi barrada nos exames: doping! A menina estava dopada! O que foi? Quem foi? Como foi? Onde foi? Quando foi? Por que foi? E agora?

A mídia veio em cima. A meninota-prodígio foi pega num exame antidoping! Que loucura! Como explicar? O que dizer? O que diriam os outros? O que diriam da comitiva riocinzense? Como encarar o público, a imprensa? Anabela se debulhava em lágrimas em afinado dueto com a mãe, o técnico colegial parecia ter formigas no traseiro, não sabia se ficava sentado ou se saía correndo, o médico da delegação queria arrancar cabelos inexistentes do alto da cabeça... tudo isso quando Dantas resolveu entrar em cena e dar um jeito na difícil situação. Recomendando muita calma a todos, orientou silêncio total, que ninguém se manifestasse sobre o caso. Mandou dizer que daria uma entrevista coletiva dentro de meia hora, que todos os repórteres, fotógrafos, câmeras, radialistas e assemelhados presentes fossem avisados. E foi falar com os responsáveis pelo centro médico, falou com dirigentes da delegação riocinzense, com o técnico, com a menina, com os pais da menina, tomou notas... enfim, se preparou para o embate com o pessoal da imprensa.

Chegado o momento da espinhosa incumbência, Dantas decidiu amenizar o impacto da ocorrência: os exames são preliminares, argumentou, acrescentando:

- Ainda há necessidade de confirmação. Realmente pode ter acontecido algum probleminha, mas não é provável.

E resolveu fazer graça:

- Vejam só a ironia: a Anabela foi atacada pelo anabola.

Como ninguém entendesse a tirada, Dantas explicou:

- Pois é. Segundo os médicos, a Anabela teve problemas com os anabolizantes.

Dantas, aparentemente, não conseguiu alcançar a sua intenção de descontrair o ambiente. Veio com uma explicação mais “técnica” (e também puxando pelo sentimentalismo, claro!):

- Vejam bem. A Anabela é uma menina de doze anos, com uma carreira promissória pela frente, e não teria nenhum motivo para tomar alguma droga proibida. Com certeza foi um acidente, talvez por causa de algum remédio da medicância que ela está tomando...

E arrematou:

- Na verdade, os médicos informaram que ela só ingeriu alguns asteróides...

 

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A estreia do parlamentar

Um dos episódios mais comentados na cidade aconteceu numa das primeiras sessões da Câmara em que Dantas participou, logo no início de seu mandato. Numa residência vizinha ao prédio da Casa de Leis havia alguns cães, os quais se mostravam particularmente agitados naquela noite, na hora da reunião legislativa. Incomodado com os insistentes e ruidosos latidos, Dantas pediu a palavra para sugerir ao presidente da Mesa Diretora a suspensão temporária dos trabalhos, pois a latitude dos cães estava insuportável. Com singular presença de espírito, o presidente entrou na brincadeira:

- Sabe que o nobre vereador tem razão? Mesmo porque, infelizmente, a longitude desses latidos é muito pequena. 

 

  A mortalidade infantil

Meses depois, estava o Dantas metido num seminário sobre saúde, onde se discutiam, entre outros assuntos de suma importância (ou de importância sumária, como diria Dantas), a questão da mortalidade infantil. Alguém se referiu aos meados do século passado, quando o Governo do presidente Getúlio Vargas instalou várias maternidades em diversas cidades do país visando reduzir os elevados índices então registrados. Pedindo um aparte, Dantas expôs sua tese com invulgar brilhantismo:

- Já fiquei sabendo dessa situação algum tempo atrás e fico imaginando mentalmente que o índice de mortalidade infantil daquela época também era aumentado pela morte de muitas mães durante o parto...

 

Dantas vai a Brasília

No limiar de suas atividades políticas, Dantas recebeu a incumbência de visitar um determinado deputado federal em Brasília. A direção do partido providenciou tudo: passagens de avião, reserva de hotel e os demais complementos, inclusive alguns recursos para as inevitáveis despesas extras.

Sobre o contato com o deputado, foi-lhe informado nome e endereço do gabinete, bem como o contato telefônico, além do apelido do parlamentar. Para escrever menos – pois escrever lhe era sempre um desafio –, Dantas  só anotou o apelido – Quinzinho – e o número do telefone. E partiu para Brasília.

Foi a primeira vez a viajar de avião. Informou-se de todos os detalhes a respeito. Embarcou com bagagem despachada e uma pequena maleta de mão, tipo aquelas 007 de antigamente, na qual praticamente não tinha nada. Mas era para impressionar, precisava. Afinal, também era um parlamentar! Embarcado, quis acomodar a maleta no guarda-bagagens. Como o compartimento estava fechado, começou a empurrar a portinhola, quando foi interpelado por uma das comissárias de bordo:

- É só puxar – disse a moça, e abriu o compartimento com facilidade, disponibilizando-o para o uso do Dantas, que reagiu em tom de repreensão:

- É, moça, mas aqui tá escrito push (em inglês, push = empurrar).

Após a chegada na Capital Federal e uma noite de sono no hotel, Dantas procurou contatar o tal deputado. Não lembrava o nome, mas tinha o papelzinho, onde estavam o apelido e o número do telefone. Ligou:

- Eu gostaria de falar com o deputado Joaquim.

- Aqui não tem nenhum deputado Joaquim. O senhor deve ter ligado errado.

- Aí não é do número xxxx?

- Sim, mas aqui não tem nenhum Joaquim. Aqui é do gabinete do deputado Figueiredo.

De chofre, Dantas se lembrou do nome do deputado. Era ele mesmo. Mas ele achava que o nome era Joaquim. Superado o incidente, Dantas foi ao Congresso Nacional, localizou o gabinete do deputado, tratou com ele os diversos assuntos que tinha na pauta (quer dizer, na cabeça). No dia seguinte voltou à terrinha.

De novo em casa, Dantas quis um esclarecimento com os colegas de partido:

- Eu pensei mentalmente que o nome do homem era Joaquim. Por causa do apelido, Quinzinho.

- Que nada, Dantas. O deputado Figueiredo tem esse apelido, Quinzinho, porque costuma cobrar quinze por cento de comissão pelas verbas que consegue liberar junto aos órgãos do governo.

 

A tomografia computadorizada

Em recente sessão da excelsa Câmara de Vereadores de Rio das Cinzas, Dantas pediu a palavra para registrar um acidente de trabalho ocorrido com um cidadão da cidade, mestre de obras, quando uma viga de madeira desprendeu-se de um andaime atingindo o cidadão na cabeça. Falava com ênfase na crítica à precariedade dos recursos médicos no município. No seu arrazoado Dantas afirmou e repetiu algumas vezes que o referido trabalhador precisou ser encaminhado a uma cidade vizinha para a realização de exames de topografia computadorizada. Tergiversou longamente sobre o assunto, até que um dos colegas pediu um aparte para corrigir a expressão:

- Não seria uma tomografia computadorizada, nobre vereador?

- Não sei, acho que não. Deve ser topografia mesmo. A pancada foi no topo da cabeça...

 

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