COLABORADORES


As fobias e manias de Virgílio Madureira
         Mário Gentil Costa

Era quase meio-dia de uma sexta-feira. Marcos e Muca voltavam da faculdade, onde tinham tido aulas de anatomia e fisiologia. Estavam famintos. Chegando ao topo da escadaria da pensão, deram com um senhor grisalho, guarda-chuva numa das mãos, maleta de couro negro na outra, a bater insistentemente à sua porta. Era o Dr. Tertuliano Madureira, advogado ilustre, pai de Virgílio Sorna Madureira, o popular Virgo, terceiro ocupante do quarto, que ficara dormindo
a manhã toda, após mais uma de suas longas e gloriosas noitadas de folgança.
         - Bom dia, doutor!
         - Ah, sim, são os senhores. Que bom! Estou aqui batendo há um tempão...
         - Acho que ele não está - declarou Marcos, solidário, já antevendo problemas.
         - Está, sim. A proprietária me disse. Mas esse menino sempre teve o sono meio pesado.
         - Bem, se ela disse, vamos abrir a porta - sugeriu Muca.
         - Sim, por favor.
         Barulho da chave girando na fechadura. Porta escancarada. Escuridão total. Ambos sabiam que o mandrião estava, pois o tinham visto chegar ao raiar do sol. Queriam, apenas, dar-lhe a cobertura logística que a dona da casa, inocente, deixara de dar. Postigos da sacada abertos com estardalhaço proposital. Luz do dia jorrando e invadindo o quarto. Lá estava ele, esparramado, inconsciente, a estertorar seus roncos inacreditáveis, absolutamente alheio à constrangida apreciação paterna.
         - Ele sempre dorme até esta hora? - foi a pergunta precipitada, embaraçosa.
         - Não, doutor, isto é... não havia outro jeito; ele estudou até de madrugada - foi a resposta que ocorreu a Marcos, na ânsia de justificar o indefeso dorminhoco.
         - Ah, sim, então está certo. Se ficou estudando, tem de dormir. Vocês, jovens, não podem perder sono; precisam repor as energias gastas nos estudos.
         - É isso mesmo. De tanto estudar, ele gastou as energias e agora está tratando de recuperá-las. Porque tem prova amanhã - adiantou Muca, em tom de apoio.
         - Ah, sim? De que matéria? - indagou Madureira, em tom protocolar.
         - Anatomia feminina comparada... - foi a resposta automática.
         - Anatomia feminina... comparada... O que é isso? - emendou, surpreso, o visitante.
         - Bem, é maneira de dizer. Estuda-se no livro e compara-se no corpo humano - explicou Marcos, mais que depressa.
         Era evidente a expressão de perplexidade do doutor, logo desfeita por Muca que, em oportuna intervenção, complementava:
         - No cadáver feminino, doutor Madureira.
         - Ah, sim, no cadáver feminino, é óbvio... Mas a que horas ele vai acordar? Quero levá-lo a almoçar comigo.
         - Onde o senhor está hospedado? - indaga Marcos.
         - Aqui na frente, no Hotel Presidence.
         - Se preferir, nós o acordaremos e daremos o recado - sugeriu Muca, já preocupado.
         - Não, prefiro acordá-lo eu mesmo.
         - Então, doutor, fique à vontade - propôs o estudante com um velado sorriso, enquanto, depositando os livros sobre a mesa, virava-se para o colega e completava baixinho: - Se conseguir...
         Não deu outro bicho. Os esforços do velho advogado para despertar o filho foram em vão. Sacudia-o, dava-lhe beliscões nas bochechas, gritava seu nome, e nada. Era inútil. O cara não abria o olho, e, em meio a resmungos desconexos, os roncos continuavam, terminando sempre com aquela esquisita espécie de sopro resfolegante que lembrava um espirro eqüino.
         - Meu Deus, que coisa difícil! Nunca pensei que este menino tivesse um sono tão profundo.
         - Isto não é sono, doutor. É um CHP... - corrigiu Marcos, com ares diagnósticos.
         - C o quê?
         - CHP... "Coma Hibernallis Provocatur" - traduziu o estudante.
         - Coma...? Então ele está doente?
         - Não, em absoluto. O CHP é uma técnica de hibernação comatosa auto-induzida. Uma forma inconsciente de absorção de conhecimento a que a pessoa se induz para apreender profundamente o conteúdo do que estuda. Espécie de auto-hipnose didática. O senhor compreende? - acrescentou ele, com a cara mais séria deste mundo.
         - Engraçado, nunca ouvi falar nisso! E olhe que vivo lendo revistas científicas. Mas não deixa de ser uma teoria interessante. É coisa nova?
         - É, até certo ponto. Foi descrita há poucos anos por um famoso fisiologista russo, o Professor Malenkov, da Academia de Ciências de Moscou - arrematou Marcos, com os mesmos ares magistrais, pois tinha saído com a peta e agora se via na obrigação de sustentá-la.
         - Sim, sim, muito bem, mas... como se faz para despertá-lo deste... como diria... deste estado...?
         - Pois aí é que está o problema. Nós dois ainda não dominamos o método. Por isso sugerimos que fosse esperá-lo no hotel. É claro que, mais cedo ou mais tarde, ele irá acordar por si, mas poderá dormir um dia inteiro. O relógio biológico... isso que modernamente vem sendo chamado de biorritmo... é que determina o despertar, o senhor compreende? Se quisermos acordá-lo antes, teremos de chamar um colega, que mora no prédio do lado. Só ele tem o segredo - explicou Muca, em auxílio ao companheiro.
         - Mas que coisa complicada, não lhes parece? E se esse homem não estiver em casa? Se tiver viajado...?
         - Bem, nessa hipótese, a gente chama o catedrático de neurofisiologia, que mora nos arredores da cidade... - acrescentou Muca com ar convicto.
         - Não me diga!
         - De fato é meio longe, mas, em último caso...
         - Não. Não é a isso que me refiro e, sim, ao fato de exigir a presença de um cientista...
         - Mas não se preocupe. O senhor pode esperar no hotel - reafirmou Marcos.
         - Não, eu espero aqui. Por favor, senhor Marcos, vá chamar esse seu colega! Já estou ficando preocupado - declarou, pouco à vontade, o prudente advogado.
         Lá foi o mensageiro em busca do especialista, ninguém mais, ninguém menos que um companheiro de turma com quem Virgílio mantinha uma amizade muito estreita e fraterna.
Enquanto isso, o insigne defensor da lei, girando o cabo do guarda-chuva na mão como se fosse uma ventoinha, caminhava para lá e para cá no corredor entre os pés das três camas e a parede do quarto. Cansado de tanto esperar, dirigiu-se à janela e ali ficou a olhar a rua, três andares abaixo.  De repente, no silêncio só interrompido pelos roncos porcinos do adormecido, começou a contar, com o dedo indicador da mão esquerda apontado para baixo:
"1....., 2....., 3....., 4....., 5....., 6....., 7....., 8..... É....., calculo que seja o bastante."
Quando ia dar a Muca - que lhe fizera companhia nesse interlúdio e não escondia seu embaraço diante de tão singular contagem - uma explicação cabível, ouviu-se a voz do especialista, que, ao lado de Marcos, assomava à porta e dizia alegremente:
         - Bom dia, doutor Madureira! Meu nome é Tomás Portella. Mas o senhor pode me chamar de Portelão. Vim ver o que há com o nosso querido Virgo.
         - Sim, sim, como vai, meu caro? Ouvir dizer que é um especialista... o único que pode tirar meu filho deste... hmmm... deste estranho estado comatoso.
         - Especialista não é bem o caso; foi ele mesmo que me ensinou. Mas não se preocupe. É uma manobra rápida e simples. Só preciso de uma caixa de fósforos...
         - Fósforos? - exclamou o causídico, espantado, enquanto Muca, pressuroso, tirava da algibeira sua caixa Fiat Lux.
         O torporoso estudante, absolutamente surdo ao vozerio que acontecia a seu redor, continuava roncando a sono solto, quando Portella se dirigiu a seu pé direito tirando-lhe a meia branca já encardida e, com o fósforo aceso, separou delicadamente o dedão de seu elemento vizinho, soprou o palito e, ato contínuo, deu um leve toque com a brasa ardente na junção dos artelhos. O efeito não se fez esperar. Num instante ele acordava, assustado. Olhava em torno com ar esbugalhado e expressão perdida, quando deu com a figura do pai, de pé a seu lado.
         - Pai!! O que está fazendo aqui??
         - Cheguei há pouco do aeroporto e vim buscá-lo para almoçar, meu filho. E deparei com este quadro insólito... de uma pessoa da minha família que, por razões que não percebo, só pode ser acordada à custa de fogo em brasa.
         - Bem... é que eu...
         - Nós já explicamos ao doutor Tertuliano que estudaste Anatomia Feminina Comparada até de madrugada... - apressou-se a declarar Marcos.
         - Sim... é isso, pai. Estava muito cansado e...
         - ... E fizeste a tua auto-hipnose educativa... - apressou-se a emendar Muca, em tom de confirmação.
         - É, pai... é isso... - confirmou Virgílio, cauteloso e perplexo.
         - Teu pai desconhecia a técnica do Coma Hibernallis Provocatur... o nosso popular CHP... - pronunciou Marcos, com a perfeita inflexão latina que o título exigia.
         - Técnica do quê? - perguntou inadvertidamente o apalermado mancebo, a cara espantada com o palavrão que jamais havia escutado.
         - Então não te lembras do CHP? Se o praticas quase todo dia? - interveio Muca, para dar mais credibilidade à farsa.
         - Ah, é verdade. Eu acho que ainda não estou bem acordado. É claro - concordou ele, reticente, embora já mais participativo.
         - Talvez tu estejas precisando de uma segunda dose... - sugeriu Portella, que já se entrosara francamente na pantomima e acendia um segundo fósforo, acrescentando magistralmente, enquanto se dirigia ao outro pé do amigo: - Às vezes... embora estatisticamente seja muito raro... é preciso...
         - Espera um instante, Portelão - pediu Marcos. - Vou fazer ao Virgo uma pergunta-chave. Dependendo da resposta, aí, então... Escuta, Virgo... não foi Malenkov, o fisiologista russo que descobriu esse método de aprendizado inconsciente através de auto-hipnose, que ele mesmo chamou de Coma Hibernallis Provocatur?
         Aí, ele pegou a deixa e completou brilhantemente:
         - Claro! - e, batendo na testa, como se se penitenciasse de um imperdoável lapso de memória, completou: - Claro! A técnica de Malenkov. Desculpe, pai. Eu ainda estava meio sonolento.
         Pronto. A situação sob controle, ele se levantou, fez, no fundo do corredor, suas sucintas e inadiáveis abluções matinais e em poucos minutos estava a postos para acompanhar seu aflito progenitor ao luxuoso Hotel Presidence, o mais granfino da cidade.
         Lá de baixo, enquanto atravessava a rua, virou-se para os três companheiros que, mortos de fome, o olhavam empoleirados na sacada e enviou-lhes aquele adeusinho cúmplice, ao mesmo tempo, debochado. E sumiu na imensa porta giratória de cristal bisoté do saguão do famoso hotel, para degustar, na companhia do velho, o lauto e suntuoso cardápio francês, pois sabia que os amigos, que o haviam livrado da enrascada, iam comer feijão com arroz e almôndegas Lavoisier que, de francesas, só tinham o conceito, ou seja, "nada se perde; tudo se transforma".
        

2
- Enquanto tu estavas fora, o homem foi à janela, olhou lá pra baixo e fez uma coisa tão esquisita... - observou Muca, voltando para dentro do quarto.
         - Que foi que ele fez? - indagou Marcos, curioso.
         - Ah, sei lá! Apontou o dedo para baixo e começou a contar 1,2,3..., como se estivesse conferindo alguma coisa.
         - Tás brincando.
         - Te juro! Contou, em voz alta, de um a oito, e parece que chegou a alguma conclusão...
         - E não perguntaste o que era? - quis saber Marcos.
         - Não deu tempo. Quando ia perguntar, vocês chegaram. Mas, como conheço o Virgo, aposto que ainda vamos saber.
         Desperdiçada essa excelente oportunidade, a única pessoa capaz de trazer alguma luz sobre o mistério da contagem seria, de fato, o próprio Virgo, que, além de conhecer profundamente as excentricidades do pai, teria com ele um interlúdio de almoço muito apropriado a tais esclarecimentos, pois tudo fazia crer que este, espontaneamente, entrasse em pormenores a respeito.
         De fato, Muca não esperava que fosse tarefa das mais fáceis tocar no assunto, visto que o querido Virgílio, ciente de suas próprias esquisitices, mostrava-se sempre cioso em discuti-las, limitando-se apenas a generalidades que não viessem estimular o eterno ânimo de molecagem dos amigos, sempre prontos a descobrir novos motivos de riso à sua volta.
         Deglutido rapidamente o repasto da pensão, os dois, embora cansados, mas com a curiosidade excitada, puseram-se a conversar:
         - Será que ele estava contando carros? - conjeturou Marcos, mais para si mesmo, enquanto, fumando seu cigarrinho pós-almoço, matutava estirado na cama.
         - Acho que não. Ele terminou com um “bastante”... - esclareceu Muca.
         - É, não faria sentido. O jeito é esperar. Estou doido que o Virgo volte para tirar isso a limpo.
         - É um sujeito engraçado, esse Virgo. Nunca vi um camarada tão original... tão ele... tão autêntico - comentou Muca.
         - Não sei se tu pensas como eu, Muca, mas estes tempos que vivemos hoje são preciosos e irrecuperáveis. Devem ser bem curtidos. Porque, segundo meu pai sempre diz, passam muito depressa.
         - É, os velhos sabem das coisas. Só sei que quero viver bastante para, um dia, relembrar tudo isso com saudade - desejou Muca, com olhar sonhador.
         Em seguida a essas sábias, votivas e proféticas reflexões, fez-se um silêncio prolongado, e o sono acabou por vencê-los. Enquanto dormem sua merecida sesta, vamos relembrar alguns episódios que, certamente, terão ficado impressos de maneira indelével em suas memórias e, indubitavelmente, na de Virgílio Sorna Madureira.
        
3
Uma noite, lá pelas oito, chegou o Elísio, irmão de Marcos, vindo de casa num daqueles micro-ônibus Mercedes-Benz de focinho comprido, do Rápido Sul-Brasileiro. A viagem levara treze horas. Como era de praxe com todas as visitas - e quando a grana do mês permitia - foram todos comemorar a chegada do ilustre visitante no Restaurante Rio Branco, onde foi derrubada, com apetite voraz e entre goles de vinho tinto nacional, uma suculenta macarronada-à-Bolonhesa.
         De volta à pensão, conseguiram com a proprietária, dona Glória, um colchão sobressalente, que foi estendido no estreito corredor entre as três camas e as mesas de estudo, o mesmo que, meses mais tarde, o doutor Tertuliano Madureira palmilharia, a girar o guarda-chuva em suas ansiosas e introspectivas idas e vindas. Ali acomodaram seu hóspede que, já na época, era um manancial inesgotável de ditos espirituosos, um incomparável repentista, cujo senso de humor faria inveja aos melhores comediantes da televisão atual.
         Quando o vasto repertório acabou, quando todas as gargalhadas possíveis tinham sido dadas, estava todo mundo cansado, e o sono veio rápido. Lá pelas tantas, plena madrugada, Elísio ergueu-se subitamente de seu leito improvisado e, com uma espécie de espasmo sufocando a voz, berrou aos arrancos:
         - Pessoal! Eu não estou me sentindo... muito beeeeem!!
         E não deu tempo para mais nada. Em seqüência ao aviso inesperado e tardio, pronunciado num grunhido gutural quase convulsivo, a macarronada, que não fora digerida e já lhe subia pelo esôfago, projetou-se no espaço escuro com um esguicho em forma de parábola. E um dos pedaços do macarrão, por capricho do azar, foi descansar sobre os lábios entreabertos de Virgílio Madureira, justamente o único que dormia de barriga para cima. É incrível, pois não? O mesmo Virgo do sono pesado, tão profundo que só acordava com um fósforo aceso a chamuscar-lhe o dedão do pé. Pois não é que um simples e despretensioso macarrão foi suficiente para pô-lo imediatamente de pé?
         De repente, num salto felino de espantosa agilidade, estava ele, com a luz acesa, à frente do espelho, a olhar esbugalhado para si mesmo com tal espécie de lombriga pendurada na boca. A repugnante visão daquela tripa nacarada e a imediata noção do que havia acontecido, produziram-lhe nas entranhas uma justa e compreensível revolta, e, de cuecas, pois fazia calor, só teve tempo de correr para o banheiro, que ficava no fim do corredor, onde, à custa de arquejos paroxísticos que acordaram toda a pensão, passou meia hora a descarregar sua própria macarronada.
        
4
         Virgílio S. Madureira era uma figura invulgar. Estatura mediana, com um apetite voraz e uma invencível tendência à obesidade, era também possuidor de uma inteligência brilhante e uma memória descomunal. Simples e de boa índole, era um sujeito informado e culto, criado em ambiente de tradições ilustres e hábitos requintados. Em vista disso, distinguia-se da média por um linguajar rico de expressões raras e sustentava sem dificuldade todo e qualquer tipo de conversação mais refinada. Era, ao mesmo tempo, um cidadão jovial e extremamente engraçado. Sua risada tonitruante, quando dada com gosto, alegrava qualquer reunião e até hoje ecoa na memória de todos os amigos.
         Especialmente por ocasião das vésperas das provas é que seu poderoso intelecto dava sobejas mostras de superioridade, quando, sobrecarregado de matérias jamais lidas ou estudadas, sentava-se na cama, as pernas cruzadas como se fosse um cacique apache e, concentrando-se, em prazo inimaginavelmente curto já estava em condições de submeter-se aos mais minuciosos interrogatórios. No dia seguinte, era invariavelmente aprovado com louvor pelos mestres mais exigentes. Confiante nesses dotes extraordinários, passava suas noites na rua, rondando pelas casas noturnas e, em curto espaço de tempo, já era figura conhecida e prestigiada pelos porteiros e garçons dos mais famigerados inferninhos da cidade, onde tinha entrada franca, festejada com as mais melífluas mesuras que, quando abonado, retribuía com generosas gratificações. Em troca, era brindado com a melhor mesa, com as mais reservadas e exclusivas bebidas e as mais apetitosas companhias.
         Tinha, todavia, como todo indivíduo incomum, suas manias, das quais, por mais que se esforçasse, não era capaz de se livrar. Fumante inveterado, tinha um nojo paradoxal de baganas e cinzas de cigarro; não podia ver um cinzeiro cheio e, imediatamente, dava um jeito de esvaziá-lo, mesmo que não lhe pertencesse. Daí, talvez, o medo patológico que nutria contra a mais remota possibilidade de incêndio, conquanto não se deva afastar a hipótese paralela de algum atavismo herdado de seu pai, que também alimentava suas idiossincrasias.
         Em nome dessas fobias incomuns, Virgílio cumpria, a intervalos regulares, uma metódica ronda noturna pelos corredores e salas da pensão, além de irromper nos quartos dos hóspedes mais chegados, onde, no mínimo, submetia as sempre precárias instalações elétricas a uma olhada mais atenta, e, quando as circunstâncias favoreciam, a uma vistoria sistemática, sempre em busca de fios desencapados e outros sinais que denunciassem o aludido perigo. Depois de satisfeito, retornava ao próprio quarto e se preparava para dormir, não sem antes verificar mais uma vez a fiação e os engates que corriam por detrás das três camas dispostas em paralelo. Via de regra, arrastava-as e, não raro, munido de uma pequena lanterna elétrica adquirida especificamente para tal mister, iluminava tais conexões como faria o mais compenetrado perito do corpo de bombeiros. Satisfeito e descansado, Virgo, então, ia dormir. Dava, à custa de bem dosados e certeiros socos, aquela amassada personalizada no travesseiro e, depois de encontrar a posição ideal para a cabeça, fumava o último cigarrinho do dia, despejava, vertida de um copo sempre à mão, uma mínima quantidade de água num pires e ali, sorvida profundamente a derradeira tragada, depositava a bagana que se apagava na hora, garantindo-lhe assim o sono profundo e repousante.
         Outra de suas obsessões concentrava-se em instrumentos de corte ou perfurantes que, mesmo estando a segura distância, não escapavam de seus cuidados extremos. Dessa maneira, passavam por seu rigoroso crivo facas, garfos, canivetes abertos, tesouras e, especialmente, lâminas de barbear, daquelas que, uma vez envelhecidas pelo uso específico, convertiam-se em excelentes apontadores de lápis. Virgo, para evitar esse tipo de manuseio alternativo, comprava, para consumo próprio, pois os perdia sistematicamente, carradas de apontadores escolares que lhe proporcionavam - e disso se ufanava - as mais cônicas e simétricas pontas da pensão, mesmo porque, não obstante seu inegável brilho intelectual, confessava-se totalmente desprovido de habilidade manual para qualquer tarefa que demandasse delicadeza e precisão de manobras. Tanto isso é verdade que o advento dos cortadores de unha constituiu para ele um divisor de águas na história da moderna tecnologia e - por que não dizer? - da própria humanidade.
         Foi, entretanto, no laboratório de fisiologia que se manifestou, para surpresa geral, a última e mais invencível de suas fobias: - o sapo, personagem trivial e obrigatório das aulas práticas. Chamado para auxiliar o professor, que, com uma agulha na mão, fazia sobre a mesa uma experiência neurológica em determinado ponto da nuca do famoso Bufo marinus da nomenclatura científica, Virgo, que fora escolhido a esmo, levantou-se de um salto e, tomado de pânico incontrolável, esbugalhou os olhos e disparou porta afora em desabalada carreira. Segundo notícias que circularam insistentemente pelos corredores da faculdade, houve, a partir desse dia memorável, um movimento de alguns colegas na tentativa de sapecar-lhe o apelido de "batráquio", titulação menos elogiosa que, felizmente, não pegou. Mas, a dar-se crédito a afirmações nunca até hoje desmentidas, ele entrou para a história do curso de medicina como o único aluno que conseguiu passar de ano sem tocar num sapo. 
        
5
Obrigados a testemunhar diuturnamente essas enfadonhas e excêntricas rotinas, Muca e Marcos, que gostavam muito do amigo, não se conformavam e, por isso mesmo, viviam em busca de oportunidades para provocá-lo com as mais imaginativas peraltices e não se cansavam de lhe pregar peças.
         A partir de uma certa época, todas as baganas fumadas durante o dia passaram a ser escondidas numa lata de marmelada - sempre coberta para não deixar escapar seu odor acre e nauseabundo. Desse hermético invólucro, elas eram trasladadas, com freqüência aleatória, para um dos inúmeros bolsos do Virgo ou enfiadas em alguma das mais embutidas entranhas do madeirame de seu estrado. Dezenas de lâminas de barbear eram quebradas em minúsculos fragmentos e depositadas sorrateiramente nas mais escondidas dobras de sua fronha ou de seu lençol e, por fim, as conexões elétricas atrás das camas, feitas por Marcos com a mais barata fita isolante, eram, a intervalos irregulares, desencapadas e deixadas expostas em sua perigosa nudez.
         E Virgo, acossado de todos os lados, não encontrava, por mais que apelasse, sua tão aspirada e merecida paz de espírito. Vivia tentando adivinhar que tipo de trampolinagens teria de desvendar na noite seguinte, e sua rotina converteu-se numa exaustiva e incessante busca de indícios, por mais velados e insuspeitos, que ameaçassem a serenidade de seu sono compulsivo e comatoso.
         Marcos e Muca - que hoje confessam à boca-pequena – chegaram a elaborar um plano para surripiar um sapo do laboratório e trazê-lo para a pensão. E já o imaginavam, contido numa bacia coberta de madeira perfurada, a coaxar, na calada da noite, agachado embaixo da cama do companheiro adormecido. Faltou-lhes, todavia, a coragem. Sabedores da repugnância emética que o viscoso e gelado anfíbio despertava nas entranhas do querido Virgo, decidiram, após um difícil consenso com Tomás Portella, o Portelão, não submetê-lo a semelhante prova de resistência.
         Um dia, com a paciência esgotada, ele ameaçou:
         - Ou vocês param de me encher o saco com essas sacanagens ou eu vou embora daqui!
         Alarmados com a perspectiva de se verem privados da convivência com o genial e estimado camarada, que, por todos os demais aspectos, era estimulante e agradável, Muca e Marcos resolveram dar um basta às brincadeiras e juraram, de pés juntos, nunca mais abusar de sua inesgotável bonomia. E, embora a contragosto, pois não era fácil resistir à tentação, pararam de provocá-lo.
         É provável que, mais cedo ou mais tarde, tivessem voltado a fazê-lo, mas o destino assim não quis. De fato, algum tempo adiante, por razões que nada tiveram a ver com o aludido aviso, Virgílio Sorna Madureira fez as malas e foi morar com Tomás Portella num apartamento próximo. Tinha, finalmente, a seu lado e a qualquer hora, o especialista em condições de tirá-lo rapidamente do mais profundo Coma Hibernallis Provocatur e, com isso, a garantia de não perder, pelos menos, as aulas da tarde e, sobretudo, as provas.
         Com efeito, não foram raras as vezes em que Portelão - que hoje o confessa contrafeito, sem, contudo, ocultar o sorrisinho de canto de boca que é uma de suas marcas registradas - teve de apelar para meia dúzia de fósforos, a fim de que o colega, colocado às pressas dentro de um táxi, chegasse à Santa Casa a tempo de submeter-se a um exame final, do qual, invariavelmente, saiu para comemorar mais uma de suas incontáveis façanhas intelectuais.
        

6
         Nessa nova morada, embora houvesse, da parte de seu novo e solícito parceiro de quarto, o maior zelo por seu bem-estar, Virgo, cuja “imerecida” fama de dorminhoco já excedera os limitados umbrais da antiga pensão e se alastrara por todo o vasto pelotão de conterrâneos, viu-se, aos poucos, acossado pela fruição impiedosa de novos torturadores que, sem a mesma sutileza dos dois antigos, Marcos e Muca, puseram-se a atormentá-lo com o mais variado tipo de velhacarias. Uma dessas, que marcou época e está para sempre gravada na história do Edifício Balança-Mas-Não-Cai, foi a tarde em que, com cama e tudo, foi transportado, em profundo estado de CHP, para o corredor e deixado a roncar à frente do elevador. Os demais moradores, que embora alheios às hilariantes motivações do insólito espetáculo, viram-se forçados a testemunhá-lo, não conseguiam esconder uma expressão que era, a um só tempo, um misto de constrangimento, curiosidade e vontade de rir. E ali ficou ele sozinho a ressonar, absolutamente indiferente aos barulhos naturais do vai-e-vem ambiente, enquanto o resto da turba disputava, a socos e empurrões, um lance de vista pela fresta da porta entreaberta do apartamento. Até que um dos idealizadores da patifaria, para dar o toque de surrealismo à montagem do cenário, serviu-se da caixa de areia que ficava entre as portas dos elevadores e, enchendo-a das baganas de cigarro previamente acumuladas como reserva técnica para futuras patacoadas, depositou-a bem junto a seu nariz, ao lado do travesseiro. Ocorreu, então, passados alguns minutos, durante os quais suas narinas abriam e fechavam ritmadamente como se estivessem farejando algum perigo, um fenômeno semelhante ao do macarrão, com a dessemelhança de que, ao invés do tato, o olfato era agora o sentido provocado. De repente, um de seus olhos, justamente o que não estava em contato direto com a fronha, ou seja, o de cima - já que ele dormia de lado - abriu-se e piscou estarrecido ao deparar, a não mais de dez centímetros, com o aludido recipiente. O que ocorreu em seguida foi uma vertiginosa seqüência de gestos e atitudes cuja descrição detalhada foge aos humildes poderes testemunhais deste narrador, tamanha a rapidez com que os lances se sucederam. Só é possível assegurar que ele varreu, com os olhos ainda desfocados de quem desperta de um pesadelo, os 360 graus daquele estranho mundo em que se achava, pegou a borda da caixa - que derramou parte do conteúdo sobre o lençol - ergueu-se de um arranco e, carregando-a com ambas as mãos, no olhar a expressão de quem desperta de um sonho mau, marchou com passos descoordenados para o apartamento, escancarou a porta, atravessou o compartimento, abriu a imensa janela que dava para a frente do prédio e arremessou-a, com uma espécie de urro de cólera, do décimo andar sobre a rua lá embaixo, onde, por cúmulo da sorte, despedaçou-se com um estrondo seco sem atingir nada nem ninguém. Feito isso, entrou no banheiro, vestiu-se sem dizer palavra e saiu porta afora.
         A turma, calada e contrafeita com os inesperados desdobramentos do tragicômico episódio que poderia ter tido conseqüências lamentáveis, reuniu-se e decidiu, por unanimidade e de uma vez por todas, dar um basta às galhofas. E, a partir desse dia inesquecível, Virgílio Madureira, finalmente, encontrou a paz que tanto buscava.    
        
7
         Finda a sesta que nos propiciou essas fantásticas e incríveis reminiscências, a tarde transcorreu sem que Virgo aparecesse, e os dois, que haviam retomado o estudo, pois tinham prova no dia seguinte, não se deram conta da passagem do tempo. Lá pelo anoitecer, quando se aprontavam para tomar seu café reforçado com sanduiche de queijo, preparado no próprio quarto no velho rabo-quente destinado a esse crucial mister, ouviram os passos inconfundíveis do companheiro que chegava.
         Olharam um para o outro sem nada dizer, como se procurassem, com o gesto mudo, entrar em acordo sobre como abordar a questão. Virgo, por sua vez, limitou-se a um “olá” perfunctório e, sem outras palavras, foi tratando de se pôr à vontade. Isso, em sua rotina, significava tirar gravata e paletó, abrir colarinho, afrouxar cinto, desabotoar braguilha, descalçar sapatos, estirar-se na cama e acender um cigarro. E ali ficou, em silêncio, o olhar perdido no forro, a atravessar a esmo as caprichosas volutas que a fumaça criava à sua frente.
         E os dois... quietos. Nem falavam nem conseguiam estudar. Já conheciam o amigo; sabiam que estava elucubrando alguma coisa. E acharam melhor esperar.
         Passados uns bons quinze minutos durante os quais se ouviria o zumbido de uma mosca, viram que, num salto, ele se levantava e caminhava decidido em direção à sacada. Limitaram-se a acompanhá-lo com o rabo do olho. E ouviram oito resmungos sucessivos, que davam o ritmo da plena concordância com as próprias observações:
         - Hmm, hmm, hmm, hmm, hmm, hmm, hmm, hmm. É isso mesmo... oito.
         E os dois, calados, só esperando para ver o que faria em seguida. Num dado momento, Virgílio Madureira, voltando-se num giro para dentro do quarto, cruzou os braços e, de costas para a rua, declarou à queima-roupa:
         - O velho andou medindo a distância entre esta sacada e a marquise ali embaixo...
         Os dois, entreolhando-se rapidamente, fixaram, perplexos, o companheiro reticente e responderam, em uníssono, como se tivessem chegado, cada um por sua conta, à mesma conclusão:
         - É claro!
         - Sim, e o que vocês acham?
         - O que achamos de quê? - indagaram, outra vez a um só tempo.
         - Da idéia, ora essa!
         - Que idéia? - indagou Marcos.
         - Que sujeitinho estúpido; nunca entende nada - sentenciou Virgo.
         - Se ele mediu, tá medido - emendou aquele, ocultando o sorriso e já convencido de que alguma fantasia bizarra tinha acometido o doutor Madureira.
         - E tu, Muca? - perguntou Virgo, já desconfiado, virando-se para o outro.
         - Eu? Bem... eu acho a mesma coisa.
         - Que bela dupla de beócios vocês são.
         O fato é que Marcos e Muca tinham tamanha sintonia mental que, praticamente, pensavam juntos sem terem de fazer muito esforço. Nada havia sido combinado, e, todavia, ambos sabiam, por acordo tácito, como reagir com uma simples troca de olhares.
         Virgo, por seu turno, conquanto sabidamente brilhante, gravitava em outra órbita e dificilmente os entendia, a menos que se explicassem ipsis-verbis, pois, de pirraça, sempre procuravam falar-lhe com meias palavras e da maneira mais reticente e complicada possível. Com efeito, tal atitude sistemática já ocasionara alguns mal-entendidos, todos, felizmente, superados pela fraterna amizade que os unia.
         - Quer dizer, então... que não estão de acordo - deduziu ele, pesaroso, enquanto os dois, com os livros abertos, faziam de conta que estudavam.
         - De acordo? Se nem sabemos do que se trata... - protestou Marcos, com a aprovação silenciosa do companheiro, que se limitava a um gesto de concordância.
         - E eu pensando que vocês já tinham entendido - lamentou Virgo.
         - Mas entendido o quê, cara? - indagou Muca, enquanto Marcos, por sua vez, sacudia vigorosamente a cabeça em apoio ao parceiro.
         - A questão da corda, suas bestas! - retrucou Virgo, já em franca defensiva.
         - Corda? Mas que corda, cara? - perguntaram os dois.
         - Como vocês são burros... A corda, que o velho mediu...
         - Ah, então era uma corda que ele estava medindo - concluiu Marcos, com a cara bem séria, aduzindo: - Por que não disseste logo que era isso, cara? Pra que todo este mistério? Agora está claro. O negócio era uma corda...
         - Quer dizer que, esclarecido este pormenor fundamental, estão de acordo. Muito bem. Vou descer para comprar - decidiu Virgo, já tratando de se recompor para voltar à rua.
         - Espera aí! Comprar o quê? Uma corda? - perguntou Muca, preocupado com a despesa, pois a grana andava curta e, embora fosse começo de mês, já estava com suas contas no vermelho.
         - Mas que sujeito lúcido! - esbravejou Virgo, perdendo a paciência e acrescentando, com a voz alterada: - Não viste que o Marcos já concordou? E as decisões aqui são sempre por maioria simples... Ou não são mais? Todas as despesas são divididas por três. Ou não são mais?
         - Tás indo muito depressa, Virgo. Eu não disse que concordava. Só disse que tinha entendido o mistério, mas antes temos que discutir o assunto em profundidade. Qualquer despesa tem de ser criteriosamente planejada. Não podemos gastar com supérfluos... - explicou Marcos.
         - Supérfluos? E se esta merda pegar fogo??
         - Que merda? Que fogo, cara? - perguntou Muca.
         - Este prédio, sua parelha de toupeiras! Quando ele pegar fogo, meus queridos amiguinhos, a primeira coisa que vai desabar é a escada, que é de madeira velha. E nós vamos assar feito churrasco dentro desta gaiola.
         - Ah! Agora está tudo claro. É óbvio! Aquela contagem era para calcular o comprimento da corda salva-vidas. Deixa eu dar uma olhada - declarou Marcos, levantando-se, decidido, e caminhando em direção à sacada, onde, pedindo licença a Virgo, que ocupava todo o espaço, pôs-se a contar, com o mesmo dedo esquerdo, os metros até a marquise do Banco do Brasil, que ficava logo abaixo: - 1,...2,...3,...4,...5,...6,...7 - Querem saber de uma coisa? Eu acho que oito é demais. Daqui até ali não tem mais de sete metros. Quem sabe compramos só sete? Sai mais barato...
         Virgo, que já estava visivelmente possesso, explodiu:
         - Quer dizer que tu tens uma fita métrica no dedo? Pra discordar do velho em apenas um metro com toda esta certeza(?)
         - Bem... não tenho a pretensão de achar que meu metro é maior que o do Dr. Madureira, mas quem sabe o dele é menor...? - argumentou Marcos, com a maior cara-de-pau.
         - Pois pra mim é oito ou nada! - replicou Virgo, irredutível.
         - E eu continuo achando que é corda demais; vai sobrar um metro, mas, se fazes questão... - cedeu Marcos, com ar sério.
         - Quer dizer que estão de acordo. Vou comprar.
         - Hei! Espera! Eu ainda não medi! - exclamou Muca, que já avançava para a janela, acrescentando: - Se tudo aqui é dividido por três, eu também quero medir, ora bolas! - E, repetindo toda a pantomima, apontou o mesmo dedo e contou, cadenciadamente: - 1,...2,...3,...4,...5,...6,...7. É, de fato. No máximo sete. Pra que comprar demais? Seria um desperdício...
         - Além de miseráveis, são burros. Não estão vendo que numa situação de emergência, sobrar é melhor que faltar? Só saio daqui pra comprar oito. E tá acabado! É oito ou nada! Decidam! - insistiu Virgo.
         Marcos, contendo-se para não rir das palhaçadas de Muca que, atrás de Virgo, fazia mil macaquices, teve de pedir licença para ir com urgência ao banheiro. Quando voltou, ainda estavam os dois a discutir. E Virgo dizia, aos brados:
         - Olha, chega de conversa fiada! Vocês são uns enroladores. Só quero saber se concordam na questão dos oito metros! O resto é papo furado!
         - Bem, se tu achas que é indispensável... Só há um probleminha: eu tô duro. Não vejo jeito de contribuir. Pelo menos agora. Mas não sou contra a idéia, é claro. Afinal, quem sou eu para menoscabar o metro do Dr. Tertuliano? - justificou-se Muca.
         - E tu, Marcos? - Virgo, com a paciência já em trapos, perguntou ao companheiro que retornava.
         - Eu? Bem... também tô duro, isto é, tô com meu orçamento todo comprometido. Talvez, se fossem só sete metros, até pensasse no caso, mas oito tá fora de questão; minhas posses não suportariam. Agora, tem uma coisa... Se tu quiseres adiantar o capital, eu pago quando puder, desde que... digamos... em 10 prestações...
         - Eu também! - gritou Muca alegremente.
         - Quer dizer, então, que ninguém vai contribuir...
         - Não é isso! Não temos a grana - reafirmou Marcos, acrescentando: - Só pedimos um pequeno adiantamento...
         - De mais a mais, o prédio não vai pegar fogo coisa nenhuma - garantiu Muca, levantando-se, assumindo uma postura erecta, estufando o peito e imprimindo à voz um grave e solene tom de certeza.
         - Como é que tu sabes? És adivinho? Ou profeta?
         - Não, mas sou otimista.
         - Então eu sou pessimista... – concluiu Virgílio Madureura.
         - Tu o disseste! - acusou Marcos, no mesmo tom e apontando o dedo.
         - Tá bem. Eu vou comprar a corda sozinho. Mas tem uma coisa...
         - Epa! Antes que tenhas a coragem de pronunciar a imperdoável barbaridade que acaba de te acudir ao espírito cruel, deixa-me falar-te com um resquício de sabedoria... - advertiu Muca, com melodramática eloqüência.
         - Fala, oh magnífico tribuno! - concordou Madureira, com a inflexão irônica e conformada de quem já desistira de argumentar.
         - Se algum dia vier a confirmar-se tão sinistro presságio... eu e o Marcos imploraremos por uma carona em teu raro e valioso cipó, oh Tarzan das sacadas e das marquises!
         - Ah, ah, ah!... Ah, ah, ah!!... Ah, ah, ah!!!... - prorrompeu Virgo numa gargalhada estrepitosa que contagiou a todos e ecoou pela casa, não conseguindo, todavia, dissimular a admiração que votava à graça e à inteligência de seu amigo Muca.
         Mesmo assim, serenados os ânimos, o futuro e exclusivo proprietário da corda reuniu forças para concluir com a ameaça derradeira:
         - Nunca! Nunquinha!!
         E parando, com o gesto característico, à frente do espelho do guarda-roupa para certificar-se de que sua braguilha, última peça do vestuário a ser cuidadosamente inspecionada, estava abotoada em toda a extensão - pois, segundo o próprio depoimento, dado num serão de irrefletidas e francas confissões, já lhe fizera, certa feita, uma embaraçosa desfeita... - saiu porta afora.

8
         No outro dia, o sol raiou, o doutor Tertuliano Madureira viajou. E o assunto ficou no esquecimento, mesmo porque, tempos depois, os estudantes se formaram e deixaram a cidade. Pelo que constou durante muitos anos, Virgílio não comprou a corda. Ou se comprou, escondeu-a tão bem escondida, que ninguém jamais a viu.
         Uma noite, anos mais tarde, o velho casarão pegou fogo. Seu miolo de madeira ardeu, e a primeira coisa a ruir foi a escada...
Oficialmente, não era mais habitado, mas, segundo afirmam as mais fidedignas testemunhas oculares, dois mendigos que ali dormiam, escaparam milagrosamente da morte descendo da sacada por uma corda cujo exato comprimento lhes permitiu alcançar a marquise do prédio vizinho...



Apelidos
Carlos Adauto Vieira
     Certas cidades, especialmente litorâneas, ganharam secular fama pelo espírito com que seus habitantes distribuíam apelidos. Sob a capa protetora do humor ou da espirituosidade, gravavam para eternidade defeito físico, sestros, ditos, cacoetes, vícios.
      Houve uma que, até, a realçar a sua fama apelidatória, que organizou concurso de apelidos, saindo vencedor CARRANCA DO SÃO FRANCISCO, seguido de CACHORRO DE FALUA.
       Ambos retratavam a mesma pessoa e o segundo lugar se deu em virtude da erudição do autor, pouco acessível ao público.
      Cachorro de falua ou carranca do S. Francisco são aqueles figuras existentes na proa dos barcos, entalhadas ou, ali, colocadas.
      O apelido decorria do fato de um prático de barra, todas as vezes em que ia ou vinha para as manobras dos navios, na barra da baia, postar-se na proa do rebocadorzinho, que o transportava, numa pose de chamar a atenção.
      Morreu CARRANCA vinte ou trinta anos depois. Porém, indiferente ao apelido, jamais deixou de fazer a pose, indo ou vindo do serviço.
      Conheço apelidos fabulosos. Dentre todos destaco um. Seia pelo humor ferino, seja pela espirituosidade.
      Certo cidadão tinha a esposa muito católica, muito beata. Dessas que não perdem missa e comunhão diária: que passam todo o tempo livre na igreja, rezando, enfeitando altares, limpando santos, estendendo tapetes. No caso, ainda por cima o casal não tinha filhos, podendo ela dedicar-se, inteiramente a estes misteres sem prejuízo dos afazeres domésticos. O marido, cuidando da sua vidinha, dos seus passarinhos, nenhum obstáculo punha à devoção da mulher.
      Mas, cidade pequena, esta dedicação começou a despertar maledicência, tanto mais que o padre velho se aposentara e viera a lhe ocupar as funções outro mais moço, bem apessoado, dinâmico.
      O diz-que-diz-que foi aumentando na razão direta em que relacionamento entre o novo cura e a, ainda jovem senhora, por força  dos interesses da igreja, se estreitava.
      Havia e deve ter sempre havido pura fofoca. Mas certo povinho de tanto não ter o que fazer, de tanto não ter perspectivas, envolve-se no fuxico, cria estórias, inventa lendas, derruba reputações.
      Ninguém tinha ou jamais teve qualquer fato concreto a provar ligação espúria entre a senhora e o sacerdote. Porém, no ar se soltavam insinuações, os murmúrios maliciosos.
      O marido, ignorando as conversinhas, vez por outra, aceitava o padre em casa para almoçar, para tomar um aperitivo, para lhe mostrar os passarinhos, na maior das inocências.
      Fora o povinho a arraia miúda ouriçava.
      - Pô, agora até a casa já freqüenta...
      O triângulo de nada desconfiava, nem tinha motivos para tal.
      Lá um dia apareceu na cidade advogado, á procura do senhor fulano de tal, que teria direitos e interesses em herança.
      Na busca facilmente localizou o futuro cliente. Indagando no Fórum, logo um serventuário lhe deu a informação.
      - Fulano de tal?
      E chamando um gurizote, que fazia às vezes de contínuo, lhe ordenou:
       Leva o doutor, aqui, à casa do GALHO BENTO.
O autor é  jornalista, escritor e advogado
Presidente da Academia de Letras
e Artes de São Francisco do Sul.

 
 * * * * *


O CONTO E A CRÔNICA
Júlio de Queiroz

Palestra proferida na abertura do 1º Encontro das Academias de Letras do Brasil, em 1º de junho de 2012,no Auditorio da Assembléia Legislativa de Santa Catarina.

Um longínquo antepassado da espécie humana, ainda quase um símio sem pêlos, como qualquer outro animal terá grunhido seu susto ao ser atacado; sua dor ao ser começado a ser devorado; sua ansiedade quando em cio; sua satisfação ao encontrar comida.
Estes grunhidos não o diferenciavam de qualquer outro animal com cordas vocais. A grande diferença é que, ao contrário de outros animais, o grunhido de “cuidado, perigo à vista!” tomou-se um aviso a todos os outros seus companheiros, interrompeu o que quer que o resto do grupo estivesse fazendo e o alertou. A interjeição terá sido a primeira mensagem dada e recebida.
Nascia a linguagem falada, antecessora da comunicação escrita.
Na evolução dos grupos sociais, primeiro, a convivência do macho e da fêmea e os cuidados com os filhotes deu início à coesão na família; para ter maior proteção, famílias aproximaram-se entre si e formaram o clã; os clãs fortificados pela união, compuseram a tribo.
A sociedade humana estava constituída.
Neste três níveis, família, clã e tribo, teve lugar uma crescente complexidade da transmissão verbal, o aumento vocabular e, acima de tudo, o que aparentemente é um privilégio da espécie humana, o surgimento e o desenvolvimento de um vocabulário designativo não apenas de fatos concretos, mas também de sentimentos, de lembranças e de previsões. Um vocabulário de situações abstratas.
O acúmulo e a coletivização de experiências impuseram sua transmissão aos mais jovens. O acervo de experiências assim transmitido cresceu e transformou- se em sabedoria passada de geração em geração.
Mal caída a noite, terminada a faina do dia, em volta da fogueira à beira da caverna e depois das habitações primitivas, noitinha após noitinha, os mais velhos transmitiam aos mais jovens suas experiências pessoais e aquelas que tinham recebido, ainda crianças, de outros velhos já mortos.
Por que à noite? Porque após o serão noturno dormiam todos. Assim as impressões e os ensinamentos recebidos não eram toldados por impressões e experiências formadas por outras atividades após a audição.
Estes relatos e ensinamentos noturnos ganharam o tabu de não dever ser repetidos durante o dia. Em quase todos os estudos antropológicos surge a constatação de ter havido a proibição de repetir durante o dia os relatos ouvidos nas noites. Na tradição ocidental, ficou a proibição de não se contar estórias durante o dia e a admoestação, por muito tempo, severa, de que “quem conta história de dia, cria rabo”, ou seja, torna-se o demônio, o amaldiçoado, o proscrito.
Marie Louise von Kind, uma discípula de Jung, dedicou sua vida ao interpretar a linguagem simbólica dos contos de fadas, quase todos de antiqüíssima origem. Mostra ela como o conto “A Bela Adormecida”, compõe-se de determinações de um rito de passagem feminino. A menina que, apesar de proibida por seus pais estava fiando, é picada pelo fuso (o fuso é um símbolo fálico), sangra (símbolo da primeira menstruação), adormece. Em volta dela cresce uma sebe densa que oculta toda a casa (proteção da tribo) até que o homem certo (o escolhido para marido) se aproxima. Para ele a sebe se abre (as proibições grupais desaparecem) o jovem a beija  e a desposa. A unidade familiar não foi ameaçada; foi ampliada.
Dos muitos ensinamentos noturnos nasceram os relatos de valentia e proezas e também os de encantamento e amor.
Surgia um tipo de relato conhecido pelos lingüistas como folk lore, as historietas populares. São elas as longínquas antecessoras do conto e da crônica.
O conto está presente em todas as culturas humanas. Inicialmente como relatos orais. Depois do aprendizado e domínio da escrita, foi ele transposto para todos os meios de conservação conhecidos: o papiro, no Oriente Médio, as plaquetas de barro na Mesopotâmia; o papel, no Oriente Distante, as runas, em cascas de árvores do norte da Europa e o pergaminho, em toda a Idade Média.
De modo rudimentar, pode-se afirmar ter o conto escrito duas grandes fases no ocidente: A primeira no mundo pagão, mormente na Grécia e em Roma.
Na Grécia, parece que o primeiro relato escrito unicamente para deleite do leitor começou com Lúcio de Patras, que elaborou as aventuras de um rapaz que se transforma num burrico e descreve os seres humanos e seus hábitos do ponto de vista de um asno. Apuleio encadeia vários contos com um único tema: os amores de cupido e psique.
Roma teve vários autores, mas o principal deles foi Petrônio com seu Satyricon.
A segunda fase é a que abrange toda a tradição cristã e começou com os fabliaux, historietas gaulesas de todo tipo, que, quase que ao mesmo tempo, viram o surgimento da ballads, as baladas do mundo saxônico, depois anglo-saxônico.
No mundo ibérico, junto com a tradição das fábulas, depois da conquista muçulmana surgem as xácaras, do árabe jacaras, relatos de malfeitores simpáticos e aventureiros.
Uma legítima descendente da xácara é a literatura de cordel do nordeste brasileiro.
Juan Galiano Valera y Alcalá (1824—1905) um romancista e estudioso espanhol, tem um brilhante e erudito trabalho sobre a história universal do conto.
Diferenças entre o romance, o conto e a crônica
É comum, mas pouco exato, atribuir-se a diferença entre estas três formas literárias apenas pela extensão de cada uma delas. Se longo, é romance; se meio longo, é conto; se curto, é crônica. Outros acrescentam que se curtíssimo é aquilo que no Brasil é conhecido como caso ou, ainda, apenas resumido a um episódio, a anedota.
Do ponto de vista literário, as diferenças são um pouco mais complexas:
O romance tem 1) um tema principal e múltiplos subtemas. 2) elabora um aprofundamento psicológico das personagens e das situações. 3) relata uma série de acontecimentos em tempo ficcional presente à medida que estes se desenrolam e, por fim, 4) o final pode ser tanto inesperado quanto previsível.
O conto 1) apresenta um tema único ou tão forte que os subtemas sejam apenas pano-de-fundo. 2) desenha o personagem principal numa frase ou num parágrafo; 3) conta um incidente forte: 4) poe ser uma narrativa linear, mas não se aprofunda no estudo psicológico nem na motivação das ações, pelo contrário, 5) procurar demonstrar essas motivações pela descrição das ações das personagens. 6) sua linha de narrativa é horizontal e, sobretudo, 7) dá sempre um fim inesperado e surpreendente ao relato.
O romance é uma árvore com galhos frondosos espalhando-se.
O conto é um arbusto compacto com poucos galhos essenciais.
Elizabeth, Bowen, um estudiosa da forma do conto, numa série de ensaios (CoI!ected Impressions) afirma que “o conto exige apuro na técnica e no bom gosto. O que for supérfluo ou exagero dói na vista como uma inchação. Se o autor não tiver senso de medida, não há santo que o ajude.” (in A arte do conto — R. Magalhães Júnior).
Robert Kanters é ainda mais categórico: “Nada em excesso é a regra de ouro do conto.” Monteiro Lobato ensina de forma jocosa, mas oportuna: “Um conto há de sair sem esforço; como se mija”. E Mário de Andrade acrescenta com ironia que “conto é aquilo que o autor chama de conto” (idem, ibidem).
E quando, no drama “Hamlet”, o primeiro ministro Polônio se propõe, com muitos circunlóquios, a relatar ao rei e à rainha o que descobriu sobre a loucura de Hamlet, Gertrudes, a rainha, se sente obrigada a admoestá-lo: “Mais conteúdo e menos palavrório!” (ato 2; cena 2) e dá a regra de ouro de um relato.
O conto curto, quase que universalmente conhecido como short story, nasceu no mundo anglo-americano. Um de seus expoentes e dos mais queridos foi O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, de vida fulgurantemente trágica e curta.
Porter nasceu em Greenboro, Virgínia do Norte. Tentou publicar uma revista humorística. Depois trabalhou corno caixa no Banco Austin. Problemas com a prestação de contas diárias levaram-no a sofrer a acusação de ter surrupiado dinheiro do banco. Fugiu para Nova Orleans e, depois, para Honduras. Quando soube que sua mulher tinha ficado muito doente, voltou para Austin. Foi preso e condenado a cinco anos de prisão. Só serviu por três anos. Um carcereiro, Orrin Henry, foi-lhe condescendente e amável. Um companheiro de prisão emprestou- lhe um livro Retrieved Reforrnation. Porter decidiu-se a escrever um conto e o enviou para uma revista sob um pseudônimo: o nome do carcereiro amigo. O conto foi aceito e publicado. Em 1902, foi para Nova lorque, cidade que amou profundamente e que se tomou o ambiente de muitas de seus contos curtos, relatados sob o peudônimo de O.Henry
Tomou-se escritor profissional. Morreu aos 45 anos de idade de tuberculose. Deixou mais de 600 contos curtos. Alguns deles, jóias de primeiro quilate; “Relatório municipal”, “Uma historia inacabada”, “Um barganhador com cassetete” “Um amante barato”, “Dois cavalheiros num Natal” são os mais repetidos em todas as antologias. Dele, meus preferidos são “O policial e o hino”, “A última folha” e “O presente dos magos”.
Eis o resumo de um desses contos:
O policial e o hino.
Soapy (sugismundo) é apresentado no início do conto. Ele era um vagabundo de rua que tinha inventado várias artimanhas para, com a aproximação do fim de cada outono, conseguir ir para a cadeia, onde, pelos três meses de inverno, lhe seriam garantidas comida quentinha e uma cama morna.
Mas nesse outono ele não estava dando sorte. Todas as peripécias que anualmente o tinha levado à presença de um magistrado tinham falhado. Entrar num restaurante, almoçar e, no fim, avisar que não tinha dinheiro; incomodar uma senhora na rua; esparramar pelo chão a carga de maças arrumadinhas numa carroça declarando-se o culpado e várias outras transgressões da ordem pública tinham falhado miseravelmente neste pré-inverno, que ameaçava ser dos mais rigorosos. Desconsolado, caminhava a esmo pelas ruas, desesperançado do passadio desejado. Numa dessas andanças encontrou-se em uma praça, na qual se situava uma igreja. Pelas portas abertas do templo chegaram-lhe os sons de um órgão no qual alguém ensaiava as canções natalinas.
Sentado num degrau da escadaria, ao ouvir a música das canções lembrou-se de que, em menino, sua mãe as cantava para ele. Envergonhou-se de sua situação; do que se tinha tornado e da humilhação que sua mãe sentiria ao vê-lo um vagabundo de rua, sem dignidade e sem auto-estima. Prometeu-se procurar um emprego onde pudesse trabalhar comer e dormir, Iria viver dali em diante de tal modo que sua mãe se orgulhasse dele se viesse a encontrá-lo. Estava no auge de sua disposição quando uma mão pousou em seu ombro e o comando de um policial lhe ordenou que o seguisse. No dia seguinte, um juiz lhe determinou três meses de detenção por vagabundagem e falta de moradia fixa.
Freqüentemente, o enredo de um conto forma-se a partir de uma lenda ou de um relato de domínio público. Não se trata de plágio, mas de recriações de um tema. E este o caso de uma lenda religiosa medieval de nome Beatriz.
Beatriz foi trabalhado e modificado por Cesarius van Heisterbach, em seu livro Diálogo dos Milagres; por Gauthier de Coicy em Milagres da Santa Virgem; nas Cantigas de Dom Afonso o Sábio (rei de Espanha); por Jacopo Passavanti no seu Espelho da Verdadeira Penitência; por Ghisbert, O flamengo sob a forma de um longo poema intitulado Beatriz. Posteriormente, lope da Veja, Zorilla, Maurice Maenterlink, os Irmãos Tharaud e, por fim, Gottfried Keller, autor alemão moderno, em seu livro Sete Lendas, que, entre nós, foi traduzido e prefaciado por Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Ronái.
A lenda medieval fala de uma bela e jovem monja, que, entre suas atribuições, deveria cuidar e pôr flores no altar da Virgem Maria. De uma das janelas de seu mosteiro, a monja via com freqüência um belo cavaleiro, que também passou a notá-la. Acabaram se enamorando. Fugiram. Poucos anos depois de juntos, o cavaleiro a abandonou e ela teve que se prostituir. Por fim arrependeu-se e, filha pródiga, firmou o desejo de voltar e pedir perdão à madre superiora, implorando-lhe ser apenas mais uma empregada de sua abadia. Realizou seu intento. A abadessa ficou muito admirada..com o pedido da estranha e alegou que devia haver um terrível engano pois a monja jamais tinha saído da clausura. Apenas alguém roubara a imagem de Nossa Senhora. E para provar levou a visitante arrependida até o altar. Esta negou-se a entrar na capela. Lá, no altar estava a imagem de Nossa Senhora, como sempre, em seu lugar, a monja jovem estava diante da superiora com a aparência de sempre, pois a Mãe de Jesus havia tomado o lugar dela na comunidade durante sua ausência e parado o tempo. Noutro relato, A Virgem Maria também faz o tempo parar até que a monja retome. E noutro, ainda, a faz ter-se casado, tido filhos, sido feliz maritalmente. E com a morte do marido ter desejado retornar a seu viver inicial.. Também neste relato a Mãe de Jesus tinha parado o tempo.
A crônica é uma conversa entre amigos, como que dois dedos de prosa.
A diferença entre o conto e a crônica é basicamente que o conto é um relato, enquanto que a ênfase da crônica está no devaneio.
É interessante notar- que a crônica, libélula da literatura, nasceu com os jornais modernos e floresceu naquelas cidades e entre aqueles povos  amantes de conversar, capazes do amor à palavra e de degustar a boa frase, aquilo que os franceses chamam de bon mot. Surgiu em Paris, com o nome de feuilleton e, com este nome, brilhou na Berlim entre as duas guerras mundiais.
Berlim, agora outra vez capital da Alemanha, tornou-se notória pela capacidade de seus filhos de rir, contar anedotas, apelidar pessoas e monumentos, o que de nenhum modo é um atributo de toda a Alemanha. Quando, na última Grande Guerra, os aliados bombardearam inclementemente a capital alemã, na qual nem havia fábricas bélicas nem grandes contigentes militares, um dos prédios arrasados foi a Gedächtniskirche,  a Igreja da Memória, erigida em lembrança do Kaiser Guilherme 1º, em pleno centro da capital. Após o bombardeio restou apenas a torre da igreja. Ainda assim, tremendamente danifificada, com o restante de suas paredes desmoronadas de modo irregular. Alguns dias depois da demolição, tinha ficado decidido que se reconstituiria o templo no futuro, mas se deixaria a torre no estado em que se encontrava, pois os berlinenses já a tinha apelidado de “dente cariado”, mais uma criação da conhecida Berliner Maul, ou seja, “o desaforado focinho berlinense”, pois Maul é o focinho dos animais em alemão e sempre pejorativo quando usado para humanos.
Nesse período de entre guerras, o teatro de vaudeville, assim como a crônica tiveram seu auge, o que só veio se repetir depois do término da II Guerra Mundial, quando os berlinenses, cercados pelas tropas de ocupação americanas a oeste e pelas soviéticas a leste, encenou, por décadas, os politische Kabarette encenações teatrais jocosas e de afiada crítica política. Um dos mais famosos desses minúsculos grupos teatrais chamou-se die Insulaner, Os Ilhéus, pois Berlim tinha se tornado uma ilha de inteligência entre as raivosas águas de dois lados beligerantes e idiotas.
Na Berlim de entre as duas guerras, brilhou de modo ímpar um cronista literário, Kurt Tucholsky, que não agüentou a mordaça nazista. Suicidou-se.
A Inglaterra, país no qual os magnos assuntos da conversa de bom-tom são a chuva e o gosto do chá preto, e onde o horror de parecer indiscreto se corporifica na freqüentemente usada expressão: “I don’t wish to be personal” e onde as crianças cedo aprendem que “Como vai?” não é uma pergunta e, sim, um cumprimento e que deve receber como resposta apenas outro “Como vai?” é evidente que a crônica não poderia florescer. Na Inglaterra brilham de modo ímpar os ensaístas, pois que o ensaio é uma forma literária solitária, enquanto a crônica é uma conversa, uma abertura de coração. E por isto que os franceses, com maliciosa agudeza, declaram que “silêncio é o que os ingleses praticam quando em conversação animada.”
Como o romance e o conto, a crônica também se assenta sobre um tema principal, uma espécie de mote, a partir do qual a imaginação se espraia. Esse enredo abrange um fio condutor, um tema básico em volta do qual são feitas excursões em temas elucidativos. É o final da crônica que reúne todos os fios — os vários assuntos abordados — e coroa o texto.
Nas Américas, o paraíso da crônica é o Brasil. Aqui ela alcançou o nível de grande literatura.
Entre nós, a crônica surgiu em jornais do Rio de Janeiro, quando ainda capital da Primeira República, no fim do movimento Romântico, como resenhas semanais literárias e tornou-se permanente no período do Modernismo.
lnicialmente, tratava de assuntos ligeiros, superficiais e do momento. Dava a sensação de espontaneidade e naturalidade. Sua linguagem, como até hoje, era simples e objetiva.
Com o Modernismo, o processo foi transferido para a execução de pequenas narrativas circunstanciais que deleitavam os leitores.
A diferença básica entra a crônica e o conto é que a crônica não contém conflito. A crônica termina em aberto e antes de o conflito se estabelecer.
Entre centenas de magníficos cronistas do passado e recentes, surgem os nomes de Machado de Assis, Lima Barreto, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Porém, desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul, tanto no passado quando no presente, cronistas do melhor quilate abrilhantam as páginas de nossos jornais diários.
Até há alguns anos, ninguém foi mais constantemente brilhante que Rubem Braga, cujas crônicas eram a primeira leitura obrigatória para legiões de admiradores e de quem, Otto Lara Rezende, com rara felicidade, afirmou que “quando ele tem assunto é muito bom. Quando não tem ainda é melhor”
Desde sua Porto Alegre, mas em uma cadeia de jornais diários, Fernando Veríssimo tem se dedicado à crônica sardônica. Em Florianópolis, com constância admirável, Sérgio da Costa Ramos, diariamente e há anos, tem nos dado o sal de seu espírito. Agora, de Lages, Paulo Ramos Derengoski juntou-se a um grupo de cronistas que se reveza no Diário Catarinense, no qual Flávio José Cardozo brilhou com suas diárias conversações amenas. Eu, por quinze anos, colaborei dominicalmente em “O Estado” daqui, e, depois, em várias revistas da nossa capital. Atualmente, vem surgindo um grupo de jovens cronistas catarinenses, cujo ardor, próprio da juventude, clama” contra tudo isto que aí está” em catilinárias frementes. Com o tempo aprenderá que a crônica é conversa amena; nem é panfletária nem consertadora do mundo. Seu tom não é vermelho; tem o dourado do mel e analisa com a calma estóica da maturidade os desmandos do mundo que, de todo modo, parecem irmãos gêmeos de todas as civilizações.
Seja romance, conto, conto curto ou crônica, a matéria prima é a palavra.
É esta que tem que se tomar o instrumento dócil e a amante exigente do escritor. Assim como um pedreiro que não sabe manejar sua colher jamais levantará uma parede firme e forte, também o escritor que não dominar a palavra pelo seu amor e sua dedicação a ela também não conseguirá transmitir bem seu recado pessoal aos leitores.
É com a palavra,  esta matéria prima, que serão construídas as frases, os parágrafos e o texto inteiro. E preciso ao escritor amar, cultivar não só as palavras, mas tudo que lhes diz respeito: sua história, seu desenvolvimento, sua sinonimia, as nuanças de seus sinônimos.”Bastante” e “muito” são gradações de quantidade. “Bastante” é apenas o que é suficiente, o que basta; e “muito” indica mais do que apenas bastar.  Bonito, lindo, formoso, encantador transmitem a sensação de harmonia que Aristóteles declarou ser essencial ao belo. Mas nenhuma dessas palavras toma o lugar das outras.
Voltemos a amar as palavras de nossa língua. Elas não são nossa propriedade para que, por esnobice ou ignorância, distorçamos seu significado.Delas somos apenas portadores, e as devemos  entregar não estropiadas, mas intactas, às gerações que nos sucederem.
O autor é membro da Academia
Catarinense de Letras

Carlos Adauto Vieira pondera:

ELEITOR É PODER

Principalmente, os partidos políticos não têm dado muita importância a esta verdade incontestável.
São Francisco do Sul poderia ter o dobro do número, atual, de eleitores e, com isto, aumentar o seu poder de reivindicações e presença em decisões do  poder público.
Por que Joinville e Florianópolis falam tão grosso com o governador, com os deputados, com os senadores? Porque têm eleitorado expressivo, de seis dígitos!
E, lastimaelmente, São Francisco do Sul, ainda, proporcionalmente, tem perdido eleitores, votos. Diminuído o seu eleitorado com a mudança de gente daqui para outros centros mais ricos em oportunidades de estudo, trabalho, renda.
E, por outro lado, eleitores do Paraná, do Rio Grande, de Mato Grosso, de São Paulo, etc... vêm para cá, seja em busca de melhor qualidade de vida, de emprego de mão de obra, de repouso em justa e merecida aposentadoria tão mal paga, mas ficam eleitores de suas origens.
A Justiça Eleitoral, a Imprensa, a Prefeitura, a Câmara Municipal, os clubes de serviço, a Maçonaria, os Sindicatos, a ACISFS, a AMPE, as empresas de qualquer setor, especialmente, as portuárias, deveriam unir-se em uma campanha bem projetada em favor do alistamento eleitoral e da transferência de títulos para cá.
Se fôssemos cem mil eleitores, seríamos mais beneficiados pelos governos estadual e federal.  Poderíamos ter, até, um representante na Assembléia Legislativa, como já tivemos três, antes de nos “livrarmos”  de Garuva, Itapoá e Barra Velha. Somos menos de cinqüenta mil...
Temos algumas atenções, especialmente, por causa do excelente porto. Só!
É hora de iniciarmos a campanha, fazendo crescer o eleitorado francisquense. E a importância do nosso município no contexto estadual e nacional.

TURISMO E PODER PÚBLICO
Esclareceu-me um vereador que ele e os colegas não participaram do excelente e importante curso sobre este atualíssimo tema, porque não iriam ganhar diárias e perder o jeton, se faltassem às sessões.. Mas não estão em recesso?

VENDER A SAZONALIDADE
Desde 1972 tenho viajado pelo exterior, depois de te-lo feito pelo Brasil. Sempre procurei aproveitar me da sazonalidade, particulamente, na Europa, que dividia o ano turístico em “de baixa e alta estação”.
Na baixa, com preços mais baratos, no mínimo, de trinta por cento.
A sazonalidade,lá, também, sempre existiu.
Conheci lugares turísticos, como Balneário de Cerbére, entre a Espanha e França, com seus hotéis fechados durante o mês de abril. Só abertos na Páscoa!  Göschenen, nos Alpes de Andermatt, com os seus hotéis sem atendimento, embora seja uma das mais famosas pistas de esqui européias. Obserwessel, sobre o Reno, em janeiro, até, com o seu famoso Castelo-Hospedaria, cerrado, em janeiro.
Assim, não podemos chorar a sazonalidade do nosso Balneário de março a novembro.  Temos é que vendê-la.  Como?
Mostrando que o clima do Balneário tem uma temperatura média de 24 graus, diariamente. Que é possível descansar, relaxar, caminhar, nadar, mergulhar, surfar, winsurfar, velejar, pescar, ler durante todo o ano. Que é possível jogar vôlei e futebol na areia. Durante  todo o ano. E que, no período de sazonalidade, há menos atropelos, não falta água, alimentos, combustíveis, facilidade no trânsito, em hospedagem e com bons preços.
E, ainda, que há eventos, como o Torneio de Pesca da Sojopa, a Balfesta, as provas internacionais de surf, a Travessia,acrescidas das de velas e motor.
Mesmo aproveitando só os fins de semana e feriadões, é possível vender a sazonalidade. Com imaginação, publicidade, criatividade.
Criatividade é, exatamente, a capacidade de superar problemas.

SABEDORIA
Se não podes vencer o inimigo, alia-te a ele.

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EM DEFESA DO BOTO
         Carlos Adauto  Vieira

Ecologista desde a mais tenra infância, graças ao meu pai e ao Tio Olímpio, que amavam a Natureza como bem precioso e pessoal, me interesso pelas campanhas  em defesa da vegetação e da animalidade.
É só saber que um animal corre o risco de extinção, já me engajo na campanha. Sou contra a pesca da baleia, da foca, do mero, etc... valham o que valerem em termos comerciais.
E não é só no aspecto material, que me bato.
Também, no respeito à dignidade dos bichos. Por isso terço armas em favor dos botos, os quais não têm muitos amigos engajados. Mesmo, porque não conheço qualquer campanha de “Salvemos os botos”. Ou, na hipótese, “Dignifiquemos os botos”. Mas eles sofrem uma inaceitável campanha de humilhação. Como?
Desde pequenininho, ali na Praia do Martinelli, do Aldo Luz, ou no Miramar, aprendi a ver os botos em suas evoluções de ginastas. Fossem os de nariz de garrafa ou os sotálias.
-Lá, lá – esticando o bracinho e o dedinho indicador, os mostrávamos aos companheiros de folguedos.
Inventávamos, até, uma brincadeira, mais sacana do que desportiva, denominada Boto. Consistia em, depois de uma democrática escolha meio na porrada, um de nós partir atrás dos outros, mergulhando para os pegar. O pego era transformado em novo boto e a brincadeira prosseguia.
Gostoso era quando havia meninas na brincadeira. Todos  os rapazes queriam ser o boto para passar a mão voluptuosa pelas pernas e outras partes pudendas das coleguinhas, durante a perseguição.
Assim, nos familiarizamos com a espécie que nadava pelas costas catarinenses. Depois nos surpreendemos com a existência de outras espécies: o branco, o roxo, o tucuxi. Deste, o tucuxi, ouvimos histórias fantásticas, pois era conquistador nato, inclusive de mocinhas adolescentes. Principalmente, se virgens. Nossa prima Cristina, estudante de Medicina, quando estagiou na Amazônia, durante o curso de Psiquiatria, foi procurada por uma senhora com a filhota dos seus 14 anos, grávida: Foi o boto tucuxi, doutora.. Ele seduz as moças do vilarejo, disfarçado de homem. Deve ser verdadeira  a recíproca. Homem disfarçado em tucuxi. Se não, como se explica o romance do senador amazonense Bernardo Cabral com a Ministra Zélia?
Acontece que, um dia, tomei a escuna no trapiche de Canasvieiras e fui dar aquele belíssimo e gostoso passeio até à Fortaleza de Anhatomirim. No meio, a embarcação, repleta, parou e alguém avisou pelo megafone: Enseada dos Golfinhos.
- Golfinhos? Fiquei reparando como especialista no mamífero humanista. Golfinhos, nada! Botos, puros botos, centenas deles, dos nossos mais autênticos. Iguaiszinhos aos da infância e da adolescência. Iguais aos de Laguna, onde são famosos por sua amizade aos pescadores, a quem trazem cardumes de tainhas  na época própria. Protestei, berrei, discuti. Fui ao capitão reclamar da publicidade enganosa. E, ante a indiferença geral, fui consultar quem entendia: O Dr. e Professor Hilton dos Prazeres, professor emérito da UFSC, manezinho total,  e ele me deu a explicação consoladora.
-É a submissão cultural. Veio  do Flipper, aquele dos filmes. Porém, a diferença está em que o boto é boto, macho no duro. E golfinho é boto adamado.
O autor é  jornalista, escritor, advogado e 
pesquisador de História.
Presidente da Academia de Letras
e Artes de São Francisco do Sul.
dradauto@ilhanet.com.br

* * * * *
A “Associação Musical e Cultural Pomerodense” no processo do desenvolvimento da Cultura.
Gian Pietro Bontempi
Parece que Pomerode sempre coabitou com a música e o canto.
A história conta que a cidade foi fundada pelo grupo de músicos-cantores, ou “Meistersänger”, vindos da região da Pomerania.
Na época a cidade era uma aldeia na beira do Rio Testo e já convivia com cantos religiosos, melodias folclóricas e um bom número de músicos, talvez não profissionais, mas bem ativos nas funções religiosas e nos eventos sociais.
Hoje, Pomerode é um ponto de referência na atividade turística e cultural do Estado de Santa Catarina, com entidades culturais, instituições educacionais e um novo teatro que representa o orgulho da cidade.
Com suas manifestações públicas, com vários eventos e especialmente com a “Festa Pomerana”, Pomerode resgata a cultura alemã; vale a pena lembrar que a tradicional “Festa Pomerana” atrai artistas e visitantes de todo o Brasil, também da Europa e da América do Norte. Aqui as tradições locais convivem juntamente e em modo perfeito, com os diferentes costumes do Brasil, como  com a cultura portuguesa, italiana  e polonesa.
Como se sabe, o estilo musical erudito vem da Europa e especialmente da Alemanha, país que teve o mérito de impulsionar no mundo a arte mais elevada da música, conhecida como “erudita ou clássica”. Bach, Beethoven, Brahms (os três “B” da música alemã), Schumann, Wagner e outros “ Musikmeister”, representam também hoje um sublime exemplo de perfeição no campo da arte musical.
Recentemente, foi constituida a “Associação Musical e Cultural Pomerodense”, como projeto do estudo e divulgação das grandes obras musicais eruditas, quase uma homenagem aos excelentes compositores que fizeram importante a arte musical.
A nova “Associação Musical e Cultural Pomerodense” tem como objetivo a divulgação da cultura da música, especialmente européia, organizando concertos, palestras, concertos didáticos, pesquisas, além de publicações, gravações e vários outros projetos.
Um trabalho que reconhece também a importância social da musica folclórica (por isso, precisaria um trabalho de pesquisa e de resgate da música popular local), mas que destaca o conhecimento das obras dos grandes compositores clássicos. Uma atividade que desempenha os músicos da cidade, mas que prevê também o intercambio com outros artistas profissionais  do Brasil e de outros países. Um grande projeto que confia na sensibilidade artística dos cidadãos, no progresso da cultura e no talento dos seus músicos.

 O autor é professor e concertista
Presidente da “Associaçao Musical
e Cultural Pomerodense”

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Ao pé da letra
Autor: Carlos Adauto Vieira
Aos urbanistas e conselheiros da
cidade para que se atenham
à preservação dos aspectos citadinos.
Desde quando vim para Joinville, há mais de 40 anos, agora noto, com tristeza, o desaparecimento paulatino, mais constante, de locais de estabelecimentos que seriam referenciais da cidade, especialmente para quem nasceu ou viveu aqui sua infância, adolescência ou juventude.
            A começar pelo rio Cachoeira, a maior vergonha municipal joinvilense e cuja despoluição deveria ser ponto de honra da cidadania local.
            Psicólogos, sociólogos, urbanistas se empenham na conservação destes pontos referenciais, porque fazem parte da memória, não só da comuna, mas, principalmente, da comunidade, de cada cidadão.
            Ah, “era ali, me lembro...”
            Verdade que há bens comuns, semelhante aos dinossauros, que não se adaptam e desaparecem.
            A tristeza dos nostálgicos, dos passadistas, dos românticos – igual a mim – esta ganhando bases cientificas, pois a destruição destes pontos referenciais influi negativamente sobre o comportamento psicossomático.
            Nestes 40 anos, conheci o bife do Ravache; a feijoada do Ian; o sorvete do Mirko; o especial da Polar; a costela Zé Gordo e do Ernesto; o chope do Victor Hart; o café do Brunkow; os doces do Dittrich; o filé da Rex; o serviço econômico do Bitsch; a hotelaria e culinária do velho Schmidt no Trocadero. Só em culinária e locais onde se podia ir, então... Desapareceram!
            Havia trens, que nos levaram às audiências em São Francisco do Sul, Guaramirim, Jaraguá do Sul, São Bento do Sul. As marias-fumaças da maravilhosa crônica de Borges de Garuva em 15,5,96, no “Anexo” e, anteriormente, da Urda Krieger.
            Partindo daquela estação que, antes de ser tombada, ainda vai tombar definitivamente, pela falta de cultura e vontade política dos sobas.
            Muita compra fizemos no Jorge Mayerle, amigo e cliente, e no Alfredinho Boehm, cuja família foi uma das criadoras do supermercado com lojas espalhadas por toda a Manchester.
            Restam alguns destes curiosos supermercados provincianos, onde se poderia encontrar quase de tudo em mercadoria.
Sem dúvida, o mais famoso, mais folclórico, talvez pelos seus donos, fosse aquele da rua Doutor João Colin.
Era até ponto turístico pela tradição, pela variedade de produtos à disposição dos milhares de fregueses.
Ali, se encontrava desde mel (mel puro!) até camisetas de malha cinzenta; desde cetra (funda, schleud?) até prego sem cabeça; desde fogos juninos até finíssima renda de Brugges.
Levei um Ministro do Tribunal do Trabalho que, encantado, adquiriu um tamanco de madeira, procurado há tempo, para calçar quando lava seu veleiro.
Ainda, hoje, me pergunta pela loja e pelo seu proprietário, a quem fiz questão de apresentar, porque era uma figura. Nunca tive coragem de lhe dizer que desapareceram ambos.
Sua loja – fazia questão de que fosse conhecida assim – só não tinha “self-service”, porque ele sabia de cor e salteado o preço e o lugar de cada mercadoria e adorava uma prosa com os fregueses.
O lema da loja poderia ser: “Se aqui não encontrar, nem adianta procurar”.
Verdade indiscutível. Orgulho de todos os joinvilenses.
Houve, à época, discussões acaloradas sobre qual seria mais completo: ela ou o Macro.
Ponto referencial virou tema de estórias. Particularmente, pelas observações do seu proprietário.
Vamos a algumas delas.
Certo dia, um colono entrou correndo na loja e, se dirigindo ao dono, velhos conhecidos eram, gritou:
- Seu Fernando, me da uma ratoeira que preciso pegar o ônibus de Pirabeiraba...
- Tesculpa, teste tamanho só por encomenda.Maior é pros ratazanas.

Advogado, desportista náutico, recém-chegado à comarca, orientado pelos companheiros do late, foi lá fazer compras.
- Que tezecha?
-Nove metros de corda.
-Pra quê?
-Para amarrar da minha lancha.
- Enton, zer cabo. E cabo zó vendemos a quilo.
- E, agora, como faço?
- Zimples, medimos nove metros e peçamos.

Jovem senhora, recém-casada, para aumentar a renda familiar resolveu criar galinhas no enorme quintal. E verificou, horrorizada, que a galinha quebrava os ovos no choco com o bico.
Alguém, mais experiente, disse-lhe que deveria colocar ovos de chumbo no ninho. Ela bicando, sentiria dor e não quebraria mais os ovos. Pavlov puro!
- Onde achou?
Recebeu a explicação para ir lá.
De tarde, foi atrás dos tais ovos de metal.
- Zim, minha Zenhorra, posso ajudar? – perguntou-lhe um senhor, simpático, olhos glaucos, curiosos e vivos, meio curvado.
- O senhor tem ovos de chumbo?
- Non, minha zenhora – e, passando a mão esquerda pelas costas, esclareceu – é do coluna mesmo.
Carlos  Adauto  Vieira – jornalista, escritor, advogado e 
pesquisador de História.
Presidente da Academia de Letras e Artes de São Francisco do Sul.
dradauto@ilhanet.com.br

O preço
Autor: Carlos Adauto Vieira
Vencida a Revolução de 30, Getúlio Vargas mandou fazer uma auditoria nos vários ministérios para se assenhorear da situação de cada um.
O mais problemático foi o Ministério da Viação e Obras Públicas, hoje denominado dos Transportes. Já era na época e nunca mudou, se não para pior. Como estamos vendo.
Getúlio procurou entre os seus amigos revolucionários quem o poderia ajudar a sanear este problema sem se comprometer com a corrupção.
Havia muitos nomes, mas de confiança para a missão, bem poucos. Getúlio os conhecia bem e de sobra. Forçoso encontrar o homem!
Do bolso do colete, entre a coleção, juntinho ao próprio coração, existia um nome incorruptível. O Robespierre dos pampas, Salgado Filho.
Getúlio acendeu outro charuto, sorriu de si para consigo e pediu o telefone.
Pelo fio, após umas horas de espera, conseguiu a ligação. E quando reconheceu a voz do conterrâneo, herói da revolução vitoriosa, homem da sua mais absoluta confiança, disse-lhe simplesmente: “Vem ao Rio, que necessito de ti, mas tem de ser sigilosamente, em verdadeiro segredo de justiça. Voa, tchê!”
O velho e inexcedível amigo não se fez de rogado: largou tudo e embarcou no seu carro para o reencontro com o seu chefe político. Em lá chegando, já o esperava, ansioso, o presidente, que o abraçou carinhosamente, revelando a gratidão pela amizade sem suspeita, tão rara hoje. “Tenho uma tarefa hercúlea para ti e não me podes faltar. És o único dos companheiros amigos a quem posso confiá-la...”
- Em que consiste? Outra revolução?
- Pior, meu general. Um ministério... o de Viação e Obras Públicas. O maior antro de corrupção ativa e passiva da República. Há que exterminá-lo e só tu, pelo teu caráter, és capaz disso. Como sei que todos têm o seu preço e te conhecendo como te conheço, sei que jamais chegarão ao teu...
- Espera aí, queres que largue todos os meus compromissos para assumir este? Desculpa, mas não posso aceitar. Já fiz o que fiz pela tua vitória na revolução. Agora, quero a paz da estância.
Porém, Getúlio era persuasivo e o convenceu a aceitar. Aceitou!
Tomou posse e três meses depois, foi ao Catete e disse que vinha entregar o cargo, embora a missão não estivesse completa.
- Por que? – perguntou Getúlio, pasmo.
- Porque estão chegando muito perto do meu preço.


Memorias de PMs
Autor: Carlos Adauto  Vieira
Na adolescência, após o ingresso no curso médio do Ginásio Catarinense, famosíssimo e dificílimo na época, passei a freqüentar o quartel da Polícia Militar de Santa Catarina, até porque fiz amizade, mantida e aprimorada até hoje com filhos de oficiais, como o Carlos Hugo Stockler de Souza, o Airton Spalding.
Íamos ao Quartel para cumprir o mens sana in corpore sano, aprendendo e praticando esportes, além de ética e cidadania.
Como os caminhos da vida são imprevistos, afastamo-nos em determinada fase, sem perder a amizade, pois consolidada e facilmente recuperável.
Reatamos o velho e sólido relacionamento, descobrindo-nos virtudes semelhantes: Ambos (Hugo e eu) escrevíamos. E, na troca de livros pessoais, recebi as suas memórias e pesquisas sobre a pesca submarina em Santa Catarina, de que foi um dos pioneiros, já oficial da nossa Força Pública. Excelente obra com fartura de fotos das pescas e dos pescadores num tempo em que Ecologia não era uma necessidade legal. Lendo-o, numa prosa bastante coloquial e muita descritiva das performances e dos percalços, quase a gente se esquece de que as espécies, vegetais,  animais e humanas são extintivas, se se as agride inocente ou propositadamente. Os pescadores submarinos da época eram inocentes desportistas, o que justifica o prazer desta leitura sem a possibilidade ser-se biodesagradáveis.
Porém Hugo, ante o sucesso literário e histórico, não parou e nos deu “Do  Laço Húngaro às Estrelas”, símbolos das patentes militares da nossa .brava milícia catarinense.
Neste é mais ele, o Hugo do nosso tempo.  As páginas vão rolando como se estivessem a contar-nos os trechos da sua vida militar à beira de um fogão de chão assando costela; o chimarrão bem cevado com erva nova; uma canguara a passito para solidificar o vinho ou a cerveja. Não há preocupação de literatura, mas, simplesmente do seu estilo, aquele jeito franco, às vezes reticente, noutras completo, com uma memória invejável para cada detalhe, cada pergunta e, mais que tudo, para  cada resposta ao questionamento indesejado. Entretanto, em instante algum a despreocupação com a dignidade de membro da nossa Polícia Militar; antes, dando os exemplos da sua ética formação. E militar, que viveu uma boa parte da História Catarineta.
Trata-se ainda, de um livro bem editado, com uma capa colorida com o Laço Húngaro em cores da briosa Corporação, pela Above Publicações de Vila Velha – ES.
Hugo nos promete mais algumas obras com as quais, certamente, se tornará estrela da Literatura de Santa Catarina. Ou, do próprio Brasil.

O lago congelado
Colaboração de Waldir Luiz Neumann 
Autor Desconhecido
Conta certa lenda que estavam duas crianças patinando num lago congelado.
Era uma tarde nublada e fria e as crianças brincavam despreocupadas.
De repente, o gelo se quebrou e uma delas caiu, ficando presa na fenda que se formou.
A outra, vendo seu amiguinho preso e se congelando, tirou um dos patins e começou a golpear o gelo com todas as suas forças, conseguindo por fim quebrá-lo e libertar o amigo.
Quando os bombeiros chegaram e viram o que havia acontecido, perguntaram ao menino:
- Como você conseguiu fazer isso?
É impossível que tenha conseguido quebrar o gelo, sendo tão pequeno e com mãos tão frágeis!
Nesse instante, um ancião que passava pelo local, comentou:
- Eu sei como ele conseguiu.
Todos perguntaram:
- Pode nos dizer como?
- É simples - respondeu o velho.
- Não havia ninguém ao seu redor, para lhe dizer que não seria capaz.


O colar de turquesas azuis 
Autor desconhecido
O homem por detrás do balcão olhava a rua de forma distraída enquanto uma garotinha se aproximava da loja. Ela amassou o narizinho contra o vidro da vitrine. Os seus olhos da cor do céu brilharam quando viu determinado objeto.
Ela entrou na loja e pediu para ver o colar de turquesas azuis, então disse ao balconista:
- É para minha irmã, você pode fazer um pacote bem bonito?
O dono da loja olhou desconfiado para a garotinha e lhe perguntou:
- Quanto dinheiro você tem ?
Sem hesitar ela tirou do bolso da saia um lenço todo amarradinho e foi desfazendo os nós. Colocou-o sobre o balcão e disse: 
- Isso dá, não dá ?
Era apenas algumas moedas que ela exibia orgulhosa.
-  Sabe, - continuou, - eu quero dar este presente para minha irmã mais velha. Desde que nossa mãe morreu ela cuida de  mim e não tem tempo para ela. Hoje é aniversário dela e tenho certeza que ela ficará feliz com o colar que é a cor dos olhos dela.
O homem foi para o interior da loja, colocou o colar em um estojo,embrulhou com um vistoso papel vermelho e fez um laço caprichado com uma fita azul.
- Tome - disse para a garotinha, - leve com cuidado.
Ela saiu feliz saltitando pela rua abaixo. Ainda não acabara o dia quando uma linda jovem de cabelos loiros e maravilhosos olhos azuis adentrou na loja. Colocou sobre o balcão o já conhecido embrulho
desfeito e interrogou: 
- Este colar foi comprado aqui?
- Sim senhora, - respondeu o dono da loja.
- E quanto custou?
- Ah!", - falou o lojista - o preço de qualquer objeto em minha loja é sempre um assunto confidencial entre o vendedor e o cliente.
Mas minha irmã tinha somente algumas moedas. E este colar é verdadeiro, não é? Ela não teria dinheiro para pagar por ele.
O homem tomou o estojo, refez o embrulho com extremo carinho, colocou a fita e devolveu à jovem dizendo:
- Ela pagou o preço mais alto que qualquer pessoa pode pagar. Ela deu tudo que tinha.



Macheza

Autor: Carlos Adauto Vieira

Sol de quase  meio-dia. Empapados de suor, os estivadores  trabalham. Nem uma viração. Nem um soprinho de vento. O mar  sereninho, sereninho. Só o cabo do guincho geme com o peso da madeira, que vai sendo empilhada no porão, onde um terno a dispôs em ordem, ocupando o menor espaço vago.
“Carioca” comanda este terno. Há seis anos apareceu no “ponto”, oferecendo–se para trabalhar como bagrinho. Vinha do Rio. Daí o apelido. Depois de uma briga com três gringos – dois jogados n’água e um cortado à  faca – ganhou fama de valente  e passou a ser muito respeitado. Outras vitórias em brigas contra seus colegas de serviço, marinheiros, policiais, aumentaram a sua fama, que ninguém se atrevia  a desmanchar, enfrentando-o.
Guincho sobe e desce. “Ganancinha” maneja-o, limpando o rosto com um pedaço de estopa. É tijucano. Foi embarcadiço, mineiro, peão, enfim, percorreu meio mundo antes de ingressar na estiva. Calmo, alegre, trabalhador, respeitadíssimo por suas opiniões e posições em favor da sua classe. É dos que sempre se manifestam nas assembléias, com acerto e ponderação. Especialidade de companheiro, reconhecem todos. Nunca mexeu com ninguém. Dá-se com todos  e todos dão-se com ele. Até mesmo os pelegos.
Guincho sobe e desce. Gemendo sempre, como se fosse a voz dos estivadores cansados, empapados de suor, cuja vida é fazer força,  cada vez mais força. O dia está mesmo brabo  de tão quente.
- Parece um inferno - a expressão sai  como um desabafo. Uma tensão vai tomando conta  daqueles homens, mal dormidos, mal alimentados, sufocados de pelo calor e pelo trabalho  tão pesado. De repente, a lingada escapa em cima dos homens no porão.
Ganancinha grita, advertindo. Safos, todos conseguem evitar a tragédia. Uma tábua porém risca a perna do Carioca, que sangra.
- Cabra da moléstia , burro - grita  para o Ganancinha, já à boca do porão.para ver se houve algum ferido.
E partem um para o outro, tremendo ambos de raiva.
Tudo pára. Todos os olhares se voltam para os dois. No convés se encontram frente  a frente. Se miram. Chegam a sentir o bafejo um do outro. Mas param, voltam aos seus postos, compreendendo que eram os dois mais machos ali do porto  e que não valia a pena brigar. 



Parabéns Pomerode!!! 
Celso Deucher*
          Era 18:30 horas... Em Brusque um grupo de casais preparava-se para pegar a estrada e ir até a cidade mais alemã do Brasil, Pomerode. O motivo eram as comemorações do segundo aniversário do teatro municipal da cidade e a curiosa apresentação de um grupo que inventou de misturar vários estilos musicais e resolver inclusive colocar dança num show que deveria ser um Concerto de Câmera.
         As 19:30 horas estávamos todos lá na terra dos pomeranos. Eram quatro casais de Brusque, além de diversas outras pessoas das terras de Schnéeburg. O belíssimo teatro municipal, de causar inveja a nós brusquenses foi aos poucos se enchendo e como tira gosto aconteceram algumas apresentações de artistas locais, todos do mais alto nível.
Chegou afinal a hora do show principal...
         Na penumbra do belo palco anunciaram-se um pianista, um violinista, um vioncelista, um bandoneonista, um tenor e ainda um grupo de dança alemã e um casal dançarinos de tango. Era a apresentação de um show totalmente diferente do que tínhamos visto até hoje. Um show inesquecível... Não foi somente um concerto... Foi um show digno dos melhores que já tive a oportunidade de assistir. O programa musical abrangeu diferentes estilos musicais saindo da música barroca até a moderna.
A nova Orquestra da Câmera de Pomerode se apresentou maravilhosamente com composições para violino e piano de Antonio Vivaldi, Niccoló Paganini e Alberto Curci. Simplesmente impecável a atuação no violino do solista Gilson Padaratz e do  pianista internacional Gian Pietro Bontempi. O tenor Demetrio, protagonista deste evento já o havia visto de apresentar com diferentes grupos e especialmente com a Orquestra Sinfônica de Florianópolis. Neste evento Demétrio foi um espetáculo levando o público ao êxtase com varias óperas italianas de Verdi, Leoncavallo e Puccini. Mostrou a variedade do seu repertorio executando também clássicas canções do repertório italiano.
Mas não poderia deixar de falar que no grupo Orquestra da Câmera se destacaram três peças para bandoneon, piano, violino e violoncelo, no estilo popular alemão, afinal estávamos na bucólica Pomerode; Foram composições inéditas que Padaratz, tempo atrás, encontrou no acervo do musico Alfredo Rasdloff.  As composições para bandoneon foram executadas pelo músico Roberto Maske e as partes do violoncelo pelo maestro Thiago Bezerra. Todos simplesmente impecáveis nas interpretações.
Já na primeira participação do bandoneon tivemos a importante participação dos componentes do Grupo Folclórico de Pomerode, um dos mais antigos de Santa Catarina e que levou o público a uma viagem ao passado. Na condição de convidados especiais também deram um show os bailarinos Roberto e Carla de Blumenau que tiraram o fôlego do publico numa bela dança do tango.
O concertista italiano, pianista Gian Pietro Bontempi conseguiu os delicados timbres do Impressionismo Frances, tocando um prelúdio de Claude Debussy. A mágica atmosfera  de Chopin, o “Poeta do Piano” apareceu nas delicadas notas da valsa op. 69 n.2.
No teatro havia um caloroso publico que com uma atenção própria dos grandes concertos aplaudiu calorosamente os concertistas. Lá estavam o prefeito da cidade, Dr. Pizzolati, que amavelmente nos deu boas vindas, assim como a vice prefeita Gladis e seu esposo, além da coordenadora do Departamento de Cultura do município, Rosita Jung e outras autoridades.
Chamou especial atenção a presença de gente de diversas cidades de Santa Catarina e de convidados muito especiais que presenciaram o evento. Entre eles lá estava o sempre prestigiador da Cultura Sulista, Desembargador Carlos Prudêncio, de Brusque, e o renomado escritor e advogado, Adauto Vieira, de São Francisco do Sul, todos acompanhados de suas esposas.
Todos os brusquenses foram unânimes: a nova Orquestra de Câmera de Pomerode começou muito bem e deu um verdadeiro show digno dos melhores concertos europeus.
Em resumo, foi uma das mais agradáveis noites que passamos na bela Pomerode. De parabéns a administração municipal e o povo desta cidade que mantém firmemente os valores trazidos por seus antepassados da longínqua Alemanha. Mas muito além disso, parabéns pelos dois anos do novo teatro municipal e que outros eventos desta estirpe lá aconteçam. Certamente sempre que possível lá estaremos para assistir tão belas manifestações artísticas do nosso povo.
 *O autor é jornalista e escritor em Brusque SC. 

Grécia: Aonde nasceu a Democracia, agora tem a Ditadura.
Por Gian Pietro Bontempi.
Na Grécia os atuais protestos contra o governo  que se transformaram em atos de violência e confrontos com a polícia, são  reações às medidas anti-populares que prevêem o congelamento dos salários e o aumento dos  impostos. Cerca de oitenta por cento dos cidadãos já há algum tempo, pedem a demissão do governo  e uma maioria quer a saida da Grécia da Comunidade Europeia.
Depois das previsões ambiciosas dos anos noventa sobre os benefícios de uma moeda única européia, todos esperavam resultados concretos. Ao contrário, as expectativas  foram negativas e os cidadãos comuns se encontram hoje com os preços de mercadorias e serviços três vezes mais caros e quase com os mesmos salários de dez anos atrás.  A Europa, que deveria se tornar “Europa dos povos”, demonstrou, ao invez disso, a Europa dos grandes burocratas da política e dos bancos centrais. Sob o controle de um governo autoritário que quer manter grandes privilégios  de uma mínima parte da população,  sacrificam-se os cidadãos com altos impostos, congelam-se os salários e se reduzem os direitos sociais.
Vale a pena lembrar que eminentes economistas americanos, na época da introdução da moeda única, haviam manifestado dúvidas sobre a operação monetária, sem ter preventivamente harmonizado a economia de diferentes países e também integrado a cultura dos povos. Mas, o pior aspecto da Europa é representado pela Grécia e pelo risco da depressão econômica em outros países como Espanha, Portugal, Irlanda e Itália. Tudo isto demonstra que não é suficiente unificar as moedas com uma decisão política, se antes não se constituir a integração dos povos.
No caso específico, a Grécia não tem nenhuma possibilidade de sanar sua dívida pública: o turismo, a maior atividade, está praticamente parado; protestos e greves paralisam a vida civil e criam ainda uma dívida maior. A arrogância de um governo incapaz está provocando a guerra civil, um perigo que poderia se alastrar em todo o continente europeu.
Se estes fatos de arrogância política e de repressão tivessem ocorrido na América Latina, a imprensa européia os teria definido como resultados de uma ditadura agressiva.  Mas, visto que os fatos acontecem na “civilizadissima” Europa, quase ninguém pensa em condená-los. Ao contrário, a mídia parece desviar a atenção da Grécia  para tentar salvar a ideia utópica de uma Europa com  sua moeda. O mesmo  grande projeto sonhado no curso da história dos ditadores europeus   (Napoleão, Hitler), mas nunca realizado.


Noticia  curiosa sobre João Dias
Carlos Adauto Vieira *
Poucas pessoas em São Francisco do Sul estão mais homenageadas do que este senhor: tem uma escola básica na Praia do Forte; uma comunidade na Vila da Glória; uma ilha no Linguado; um cabo marítimo e um morro ( do Forte Marechal Luz) com o seu nome. Tudo no Balneário, se considerarmos a Glória como parte dele.
Mas quem foi ?
Um estudo mais sério e aprofundado dá-nos conta de que nasceu a Lebrixa, na Espanha, no século XV e morreu na Argentina, vítima de uma emboscada, em 1515. Hábil  navegador e cartógrafo acompanhara Pinzon na descoberta e subida do Rio Amazonas até o Peru, descobrindo as Civilizações Incaicas e Pré-Incaicas, tendo antes, descoberto a Península de Yucatan com a sua Civilização Maia em 1508. Nomeado piloto real, quando de sua volta à Espanha, foi encarregado das cartas náuticas e voltou ao Novo Mundo em 1509, para continuar a exploração do continente, iniciada pelo navegador Pinzon. Descendo pelo Atlântico, visita a Rio de Janeiro, mas continua descendo até entrar pela Barra de São Francisco do Sul, atravessar a Baia de Babitonga, fazer contato com os guaranis e os carijós (mistura de guaranis com brancos), em 1510. Tendo encontrado a embocadura do Rio da Prata, volta à terra natal para anunciar a boa nova, recebendo ordens de conquistar o território platino e o explorar para Castela. Com Diego Mendonza funda Buenos Aires. Numa das suas excursões pelo interior do território argentino, vítima de uma emboscada dos índios, faleceu, foi moqueado e comido.
Ele esteve em S. Francisco do Sul, quando navegava para o Prata, cuja existência não desconhecia pelos estudos feitos. Entrando pela Babitonga (Asa de Morcego, segundo os carijós), batizou-o com Ria de São Francisco, braço de mar, em linguagem náutica e para homenagem ao santo, seu padroeiro, no dia 03 de outubro de 1510, aniversário de morte do mesmo. Rios eram confundidos, pelo seu tamanho, seu volume de água com mares. Daí Dulce Mar, Amazonas; Mar Del Plata, o da Prata. E, por sua vez, mares foram, igualmente, confundidos: Guanabara, Rio de Janeiro; Babitonga, Ria (Braço de mar) São Francisco.
A maior curiosidade sobre João Dias é que, tendo estado, aqui, para se reabastecer de água e mantimentos, fez amizade com os carijós e alguns brancos; projetou uma fortaleza no Morro João Dias (hoje do Forte) que defenderia a baia e onde há o Cabo João Dias, para o que deixou cerca de dez dos seus homens de tripulação.
Pelo Canal do Linguado, onde existe a Ilha de João Dias, continua a sua jornada, indo fundear na Ilha de Santa Catarina (então Ilha dos Patos), em cuja ponta sul – Naufragados - nome dado pelo acidente naval àquela, os marinheiros e seu comandante Aleixo Garcia tiveram de buscar terra firme, na região de Palhoça(Maciambu). Ganhando a confiança dos guaranis, casou com a filha do cacique e com ela teve um filho, o primeiro registrado nascido no Brasil. Garcia, curioso,  pelo uso de metais preciosos, como ouro e prata, logrou organizar uma expedição, com a qual descobriu e traçou o Peabiru, Caminho Velho, ligação secular entre o Pacífico e o Atlântico,  traçado segundo o desenho da Via Láctea, pelo qual foi às Cataratas do Iguaçu e ao Peru, em busca de ouro, prata e pedras preciosas. No caminho, descobriu o Paraguai, do qual é considerado herói. Em São Francisco do Sul, há notícias sobre este extraordinário e universal Juan Diaz, porque o seu nome foi, inexplicavelmente, aportuguesado, já que é conhecido em todas as enciclopédias por JUAN DIAZ DE  SOLLIS.
Entre as homenagens, ligando, ainda, mais a Espanha ao nosso Município, em 2010, há que se mudar, definitivamente, do português para o espanhol, o seu nome verdadeiro.
Ilha de São Francisco do Sul, setembro de  2002.

* * * * *
Babitonga
 “ Babitonga ou bopitanga era o nome pelo qual os indígenas chamavam a bela baia, quando os espanhóis ali chegaram no século 16. Conforme Sain-Hilaire, provavelmente, deriva das palavras guaranis “mpobi”, morcego, e tang, novo, tenro. Há, também, a versão do historiador Carlos da Costa Pereira, segundo o qual, a denominação se origina de “mbolpitanga”, cobra vermelha. O nome Babitonga aparece pela primeira vez no mapa do Paraguai, provavelmente feito pelos jesuítas entre 1646 e 1649. Registra, ainda, este autor que a denominação carijó da baia “ benipitanga” ou outro termo parecido, de que babitonga é uma corruptela. Bapitonga, bepitanga, babytonga, como antes era grafado por diversos autores, dá margem a várias interpretações – filho de morcego, mbopi-tanga (Saint Hilaire) cobra coral, mboy-pitang (José Boiteux), lugar contornado pelas águas, babaétoounga, modificado para ibabahétonga, de onde, babetonga, ibabitonga (Coronel Tenório de Albunquerque, (segundo informação prestada ao dr. Affonso Taunay), podendo, ainda, na versão deste tuínólogo, significar “lugar das pitangueiras”. Finalmente, Teodoro Sampaio (O Tupy na Geografia Nacional) define “babitonga” como corruptela de “bopitanga”, alteração de embopitanga, que quer dizer “avermelhar”
Não é fácil uma significação exata. Tanto mais que Charles d´Olengèr, com o seu humor inconfundível, diz que o nome se originou quando o corsário irlandês Addison, ao falar com os nativos da Ilha Encantada e não lhes podendo compreender o linguajar, disse aos seus marujos: “They talk a baby tongue”.
Para complicar alguns pesquisadores afirmam que babitonga – asa de morcego – nasce da forma da Ilha. Não da baia. Pior, como é que os nativos sabiam o formato da Ilha ou da Baia, se não a podiam ver do alto, se não da Serra de Curitiba? Mas, tentou-se explicar.
* Jornalista, escritor, advogado e Presidente da
Academia de Letras e Artes de São Francisco do Sul


Pelo Peabiru ao sambaqui
                        Carlos  Adauto  Vieira[i]
Na sua última gestão na Prefeitura de São Francisco do Sul, o Dr. Alfredo Darcy Addison, uma das mais lastimáveis vítimas da ditadura de 64, me telefonou certa tarde, pedindo-me para acompanhar um antropólogo inglês, que visitava a nossa Ilha Encantada em pesquisas da sua especialidade e justificou: ”Falas bem Inglês e gostas destas velharias”. A última parte era a ironia irlandesa.
Acompanhei o cientista na manhã seguinte.
No sambaqui da Prainha/Praia Grande (Foi o escolhido, embora haja mais de cem no entorno da Babitonga e nas praias do leste/norte) ele se demorou, catando material do mesmo e colocando, delicadamente, em uma enorme bolsa de lona. Faria exames em laboratório londrino, quando retornasse. E remeteria cópia dos resultados para a Prefeitura.
Em dado momento me perguntou se sabia o que era aquela monte de cascas de ostras, mariscos, restos de peixe, siris, ossos humanos e de animais..
- Sambaqui– respondi calmamente. Afinal eu fora aluno do Professor e Padre Allfredo Rohr, no Colégio Catarinense, um dos primeiros a buscar nestes cemitérios indígenas elementos para a análise da vida dos que os constituíram.
- Quem os teria constituído? , perguntou-me
- Indígenas. Índios pré-colombianos. Guaranis e carijós.
- Em parte. Foram os índios de todo o sul da América do Sul, especialmente vindos dos Andes. Povos andinos. E por qual razão? Provavelmente – respondeu a si próprio – para festejar um deus – certamente o Sol – num determinado dia do ano. Guaranis e carijós levariam mais de dez mil nos para obter um monte com tal área e tal altura. Este sambaqui deve ter de cinco a dez mil anos de idade. Guaranis e carijós seriam muito poucos para tanto. Mas os que vieram dos Andes deveriam ser em número superior a cinqüenta mil. Cada leva. E, aqui, ficavam, por muitos dias, celebrando o seu Deus, comendo, bebendo, dançando, casando-se, procriando. De volta às suas aldeias, levavam sobras de ostras, mariscos, siris, peixes, animais, daí o porquê da existência de sambaquis no interior do Brasil. Especialmente, à beira de rios. Como em Foz do Iguaçu.
Incrível a teoria do inglês. Mas que provas?
Meu fraterno amigo Vilson Mendes, editor da Papalivros, me presenteou com uma obra extraordinária “OSTRAS”, sendo autores Denise e Ivan Angelo Trois, a primeira no gênero em que reúnem história, vida dos moluscos, espécies,  métodos de criação e receitas, nclusive uma especial: picanha com ostras.  À página 35, escrevem: “Há mais de quatro mil anos os índios americanos consumiam quantidades enormes de ostras, apreciando-as cozidas. O mesmo acontecia no Brasil. Os índios litorâneos consumiam tantas ostras que com as suas conchas construíram os Sambaquis, verdadeiros morros de casca”.
Meia verdade histórica, mas justificável, porque não se trata de livro voltado à História, mas ao prazer do molusco à mesa.
O escritor e editor Joel Gehlen deu à lume a prova provada da teoria com o ensaio do Professor Olavo Raul Quandt  “PEABIRU, o Caminho Velho”[ii], no qual mostra como os índios há séculos varavam do Pacífico ao Atlântico pelos peabirus, ainda, hoje, existentes, perfeitamente demarcados por vegetação própria, inclusive em Santa Catarina, conforme reportagem na excelente  revista Mares do Sul, em número do ano passado, editado, pelo, também, escritor e editor Werner Zots, narrando a excursão de um grupo de reporteres, pesquisadores  e excursionistas por eles, chegando à Serra do Mar (Três Barras, Monte Crista), na região de Joinville. Rosana Bond com o seu Aleixo Garcia acresceu mais elementos. O Rio Itapocu, que banha Jaraguá do Sul, o Gigante do Vale e Guaramirim, desembocando em Barra Velha, teve as suas margens o Caminho Velho por onde circularam  Álvar Nuñes Cabeza de Vaca, Aleixo Garcia, Doña Mência Calderon de Sanábria, vulto sagrado do Paraguai.
Facilmente por estas trilhas milenares, traçadas pelo desenho da Via Láctea.  os povos andinos chegaram à nossa Praínha/Praia Grande construindo o sambaqui, ali existente, mal explorado, porque deve guardar restos de ostras, mariscos, mexilhões, siris, fósseis de animais e seres humanos, material de trabalho, de cozinha, de mesa, pois nem a Fundação Cultural Ilha de São Francisco do Sul, nem a Secretaria de Turismo, antes, se tinham preocupado em o apresentar aos visitantes e aos nativos, com placas explicativas, como agora acontecerá, da sua importância antropológica, tornando-o ponto turístico e científico de visitação obrigatória. E, igualmente, de pesquisas. O que se poderia fazer com a colaboração do Museu do Sambaqui de Joinville e da Univille.


Carlos  Adauto  Vieira – jornalista, escritor, advogado e pesquisador de História, Presidente da Academia de Letras e Artes de São Francisco do Sul.
dradauto@ilhanet.com.br
[ii] Peabiru – Caminho das montanhas;Ralo;dos Pinheiros;Batido;da Montanha do Sol;para o Peru; de Ida e Volta”.