DINDOLIM, O MENTIROSO

Dindolim, o mentiroso

= apresentação =
Entre os personagens folclóricos que fazem parte dos grupos sociais, aqueles famosos “figuraças”, merecem destaque os inventores de histórias, geralmente absurdas, das quais muitas vezes se intitulam protagonistas (ou personagens, pelo menos). São os tradicionais mentirosos de carteirinha, cujo rótulo flagrante é muitas vezes evitado pelos amigos mais discretos para não provocarem constrangimentos. Todavia, “na moita”, ou “à boca pequena”, como se costuma dizer, a maioria não esconde a pecha, sendo comum ouvir o comentário: “... e lá vem o Fulano com suas histórias cabeludas!” Nesse caso está o famoso (se ainda não é, com certeza logo será) Dindolim, um personagem que marcará indelevelmente o nosso espaço literário com as suas incríveis “aventuras”, que provocam o deleite – ou a ira, às vezes – da sua roda de amigos.

A pipa vascaína

Dindolim chega na roda de velhinhos:
- Meninos, vocês precisam ouvir a história da pipa do meu vizinho.
- Conta, conta! - Entre os aposentados havia os que admiravam as mentiras do Dindolim.
- O meu vizinho é um apaixonado torcedor do Vasco da Gama, como eu também, claro e, não podia ser diferente, o filho dele inclusive. O Anastácio, meu vizinho, e o Fernando, o filho, montaram uma pipa gigante com as cores preto e branco e com o escudo do Vasco. A rabiola, naturalmente, foi feita com gomos de papel de seda, um gomo branco, um gomo preto, e assim por diante. Quando os dois soltaram a pipa pela primeira vez, ela alçou um vôo lindo, foi lá para o alto, bem alto, ficou quase invisível, pequenininha, pequenininha. De repente, a pandorga se descontrolou toda, começou a rabear e o Anastácio não conseguiu mais administrar o vôo. A pipa veio descendo em corcoveios indomináveis até que se chocou com o solo. Anastácio e Fernando foram verificar e – surpresa – cadê a rabiola da pipa? Simplesmente desaparecera. Não se deram por vencidos. Refizeram a rabiola, novamente nas cores vascainas e, no dia seguinte, voltaram ao campo para nova aventura. Mais uma vez o mistério aconteceu. O dia estava relativamente nublado, a pipa subiu tanto que quase não se enxergava mais. Dali a pouco começou de novo a corcovear e veio descendo sem controle para logo se espatifar no chão. Foram ver e – cadê a rabiola, outra vez? Mas nada era obstáculo para o intrépido Anastácio, que arranjou com um amigo um potente binóculo para espiar a sua pipa enquanto pairasse nos céus. Queria saber, de qualquer jeito, o que estava acontecendo. Paralelamente, o rabo do papagaio foi refeito mais uma vez, nunca se deixando de fazê-lo nas cores alvinegras do querido Vasco. O dia seguinte era domingo. Dia bonito, sol pleno. Lá se foi de novo a pipa, subindo, subindo. Por uns dez minutos ela pairou no céu azul, esplendorosa. Anastácio só observando com o binóculo. De repente, a descoberta: um grande pássaro negro atacava a rabiola com o bico aguçado e arrancava o importante acessório, levando-o sabe-se lá para onde. A pipa desceu de novo, corcoveando, e se espatifou no chão.
- E que pássaro danado seria esse? – quis saber um curioso.
- Pois então. O Anastácio observou-o bem com o binóculo, inclusive seguiu o seu vôo por alguns instantes e chegou à conclusão: era o urubu do Flamengo!
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O drama do Tavares
- Rapazes, eu nem te conto – chegou o Dindolim no grupo de velhinhos da praça. - O Tavares mandou a mulher fazer lipoaspiração em São Paulo e agora tá na maior roubada.
Na falta de manifestação em contrário – ou mesmo a favor – o Dindolim continuou:
- A mulher dele vinha se queixando que estava gorda e realmente tinha razão. Embora ainda seja meio novinha, vivia querendo fazer uma lipoaspiração. Depois de muito insistir, o Tavares capitulou. A mulher foi fazer a tal lipo em São Paulo.
Os aposentados da praça não eram muito chegados ao papo com o Dindolim. Este não estava nem aí, o negócio dele era papear. Prosseguiu:
- Era uma clínica ruim e o médico fez várias barbeiragens. A mulher ficou meio deformada – o médico tirou gordura de onde não precisava e deixou de tirar onde tinha demais. Resultado: ela ficou com a cintura, as coxas e os braços finos, o rosto chupado, mas continua com um bundão imenso. Além disso, ficou com manchas azuladas no rosto e em vários locais do corpo. Agora o Tavares não sabe o que fazer. Quer entrar com uma ação na justiça, mas o advogado diz que ele não tem legitimidade para isso. Quem tem é a mulher, que não quer processar o médico. Parece que o doutor conseguiu convencê-la de que ficou mais bonita e ela fica toda empolgada. Várias pessoas sugeriram ao Tavares que procure outro advogado, mas ele acha que não vai adiantar nada. No que tá certo, realmente não é o Tavares que deve entrar com a ação, mas sim a mulher. Ele tá muito brabo porque ficou no prejuízo, com uma mulher deformada, e não pode reclamar pra ninguém.
- Ele não pode alegar dano moral? Afinal, ele também foi prejudicado! – Arriscou um gaiato.
- No fundo, a questão não é bem essa. O Tavares tá bem de vida e uma indenização em dinheiro, para ele, não vai fazer muita diferença. Por outro lado, nenhuma ação judicial vai consertar a mulher dele.
- Então, por que tá querendo propor ação judicial?
- É mais pra incomodar o médico e usar a ação pra desmoralizar a clínica.
E continuou:
- No fundo, ele já achou a solução. Vai pressionar a mulher: ou ela entra com a ação ou ele pede a separação. Já tem até um mote: AÇÃO OU SEPARAÇÃO!
- Então...
- Só falta comunicar isso pra ela.
Depois que o Dindolim se afastou, um dos velhotes mais antenado colocou as coisas às claras:
- Na verdade, a mulher do Tavares ficou muito bem com o tratamento que fez. Ela tá muito bonita e boazuda. O problema é que o Tavares não ta nem aí pra beleza da mulher. Eles só casaram por interesse. Ele tinha e tem dinheiro e ela é de uma família tradicional. O Tavares é bichona.

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O guarda-chuva mágico
A conversa entre os aposentados corria solta na Praça Central, onde os velhotes costumam se encontrar para um joguinho de damas ou cartas. Chega o Dindolim:
- Essa aconteceu comigo, pessoal. Foi na semana passada. Vocês lembram que estava chovendo, não é mesmo? Choveu na segunda-feira, na terça e na quarta, lembram? Pois foi na terça-feira. Eu havia saído pra ir à farmácia e no caminho a chuva parou. Eu fechei o guarda-chuva e continuei até a farmácia, onde o deixei num repositório, na entrada do estabelecimento. Levei uns quinze minutos pra ser atendido. Quando saí o meu guarda-chuva não estava mais onde deixei. Só havia um outro, meio velho. Como havia recomeçado a chover, não titubeei: peguei aquele guarda-chuva mesmo e saí. Andei um trecho e de repente fiquei pensando no frio que estava fazendo e como seria bom se eu tivesse um sobretudo quentinho, ao invés do meu casaco fininho e já meio velho. Imediatamente senti um estremecimento no corpo e, surpresa, me vi vestido com um vistoso e aconchegante sobretudo preto, de autêntica lã de carneiro. Pensei que a situação estava chamando a atenção das pessoas que passavam por mim, mas aparentemente ninguém percebera nada. Eu não sabia bem o que estava acontecendo, mas de qualquer forma estava satisfeito com a situação. Satisfeito e perplexo, mas logo pensei que também seria bom ter um chapéu bem bacana – eu usava um boné meio surrado. De repente senti uma espécie de comichão na cabeça, passei a mão e lá estava um belo chapéu de feltro, novinho e reluzente. Já concluindo que aqueles milagres tinham a ver com o velho guarda-chuva que eu havia pego, pensei em algo mais valioso: que tal um relógio novo, tipo Rolex ou algo parecido, no lugar do meu velho cebolão? E lá estava, de pronto, um Rolex legítimo, coisa finíssima. Pensei em algumas coisas mais: um par de luvas para aquecer as mãos, óculos novos de grife, por exemplo. Nada mais aconteceu. Cheguei à conclusão de que eram só três pedidos, mesmo. Censurei-me por não ter pedido coisas mais valiosas, mas enfim... já estava no lucro. Então, tudo bem! Cheguei em casa, guardei as coisas que tinha ganho e também o guarda-chuva, com todo carinho. Afinal, em outra ocasião ele poderia me dar novas alegrias, quem sabe? No dia seguinte, a decepção: tudo havia desaparecido: o sobretudo, o chapéu e o relógio. E também o guarda-chuva. Tudo sumiu, como se tivesse evaporado. O pior é que as minhas coisas velhas não reapareceram. Acabei no prejuízo. Mas a aventura com o guarda-chuva mágico foi eletrizante!
Depois que Dindolim deixou a roda de aposentados um deles esclareceu:
- Foi essa a história que ele contou pra mulher. Na verdade ele foi às boates, encheu a cara e lhe surrupiaram o relógio, o casaco, o boné e o guarda-chuva. Só perdoaram a roupa, os sapatos e os óculos, até porque sem eles o Dindolim talvez não conseguisse voltar pra casa...


A viagem do Pedroso
Dindolim de novo na praça com os aposentados:
- Rapazes, eu preciso contar a última... Não é que o Pedroso foi preso quando viajou para São Filinto, na semana passada? Sabem como foi?
Ninguém sabia. Dindolim continuou:
- Vocês devem saber que ele viajou para visitar um irmão que está doente, né? Pois então, ele ligou para a cunhada informando que viajaria. Ela prometeu esperá-lo na segunda-feira para o jantar. Na segunda ele foi até Pedras Altas, onde pegou outro ônibus para São Filinto logo depois do almoço. Seriam umas duas horas de viagem, no máximo. O Pedroso dormiu e o ônibus seguiu em frente. Pedroso só se deu conta quando chegaram a Oestópolis, que fica uns vinte quilômetros adiante de São Filinto. Ficou então sabendo que não haveria outro ônibus para retornar naquele dia, teria que esperar pela manhã seguinte. Desesperado, o Pedroso sentou num banco de praça e ficou matutando sobre o que fazer. Não tinha dinheiro suficiente para pagar um táxi e nem para o pernoite num hotel, não conhecia ninguém na cidadezinha. Todos vocês sabem que o Pedroso não usa cartões de crédito nem cheques. E também não anda com celular. Mas nisso apareceu uma velhinha que sentou ao lado do Pedroso e puxou conversa. Ele contou a história. A velhota ficou consternada e tinha a solução: - O senhor, por acaso, sabe andar de motocicleta? Pedroso sabe. Ela continuou: - Meu amigo, o seu caso prova que Deus sempre socorre as pessoas que fazem por merecer. O meu filho Sebastião, que mora em São Filinto, deixou uma motocicleta aqui na nossa casa, pois teve que voltar com o carro de um amigo que havia sofrido um acidente. Nem meu marido nem eu sabemos dirigir uma moto e o meu filho anda sempre muito ocupado para voltar aqui e pegá-la. Foi por Deus que apareceu alguém que pode levar a moto para ele. O senhor topa? Pedroso topou. Pegou a moto na casa da velha e seguiu para São Filinto...
- E foi preso por quê? - Sempre tem alguém que pergunta.
- Pois então, quando estava quase chegando ao seu destino, havia uma blitz policial. Pararam o Pedroso. Ele tinha os documentos da moto, carteira de motoqueiro, tudo certinho. Mas tinha um problema: era uma moto roubada. Prenderam a moto e o Pedroso. Foi parar em cana, lá em São Filinto.
- E daí, o que mais aconteceu? - Como sempre, a história do Dindolim despertava a atenção.
- Ficou umas duas horas numa cela, na Delegacia de São Filinto. Passado esse tempo, o Delegado chamou e Pedroso foi conduzido ao gabinete da autoridade, onde foi recebido e tratado com urbanidade: - O senhor sente, seu Pedroso. O senhor precisa nos desculpar, afinal a sua prisão foi um tremendo equívoco. Espero que nada de prejudicial possa lhe acontecer por causa disso. De nossa parte não haverá maior problema, pois o senhor não chegou a ser fichado. Tá tudo limpo. - Pedroso estava mais atrapalhado que crente em terreiro de umbanda, mas perguntou o que havia acontecido, afinal de contas. O delegado esclareceu que a velha, aquela que entregou a moto, havia feito isso na ausência do marido e sem que este soubesse de nada. E saiu de casa na sequência, voltando para a praça para papear com as comadres. Quando o marido chegou em casa, a primeira coisa que constatou foi a falta da moto. Ligou imediatamente para a polícia denunciando o roubo. De pronto, o Delegado de Oestópolis acionou todas as delegacias da região e por isso foi montada a blitz na estrada. Depois que a velha voltou e contou o caso ao marido, este novamente comunicou a polícia e tudo acabou esclarecido.
Depois que Dindolim espalhou a história, vai ser um problema para o Pedroso desmentir tudo, pois afinal nem sequer tem irmão morando em São Filinto. A vantagem é que, na cidade e entre os velhinhos da praça, ninguém sabe quem é o Pedroso.

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O páreo empatado
Dindolim, numa roda de amigos:
- Quando eu viajei pelo Nordeste no ano passado, numa cidadezinha do interior, fui assistir às corridas de cavalos. Lá eram comuns as corridas em cancha reta, uma pista que, como o nome diz, é uma reta só, com cerca de um quilômetro. São habituais as corridas aos pares, isto é, correm apenas dois cavalos de cada vez, diretamente um contra o outro. Normalmente fazem-se apostas relativamente altas para os padrões locais. Também não é surpresa a ocorrência de manipulações. Cavalos favoritos às vezes “perdem” a corrida para outros menos votados, com a intenção de lesar os apostadores. Às vezes são escalados juízes para acompanhar a corrida e dirimir dúvidas. Numa ocasião dessas fui convidado a arbitrar um páreo entre dois cavalos renomados na região. As apostas eram altas, cheguei até a me sentir meio constrangido. Mas topei a parada. Os dois cavalos alinharam para a corrida, os dois jóqueis preparados para a largada, dei o tiro de festim que sinaliza a partida. Os dois animais dispararam pela reta, os dois jóqueis fustigando furiosamente os bichos. Eis que, a uns cinco ou seis metros da linha de chegada, o cavalo que vinha à frente tropeçou e caiu fragorosamente. No tombo, o jóquei foi arremessado para a frente, deslizando pelo chão gramado e ultrapassando assim a linha antes que tudo o mais. Logo em seguida veio o cavalo, também deslizando pelo gramado, mas não antes que o animal adversário, este ainda devidamente montado pelo seu cavaleiro. Deu-se então o seguinte quadro: por primeiro, ultrapassou a linha de chegada o jóquei do cavalo “A”; em seguida o cavalo “B” com o respectivo jóquei; e, em terceiro, o cavalo “A” - sem jóquei, evidentemente. Qual deveria ser o resultado, na opinião de vocês?
Depois de uma acalorada discussão, os presentes entraram em consenso: o cavalo “B” deveria ser considerado o vencedor, pois chegou ao fim da corrida devidamente equipado, conduzindo o jóquei conforme as regras, o que não aconteceu com o adversário. Mas queriam saber qual foi a decisão do “juiz” Dindolim:
- Eu dei empate, que não sou burro! Para quem não gostou, fiz a seguinte demonstração: eram na verdade quatro animais (os jóqueis não gostaram, mas tiveram de aceitar). Cada um deles tem a sua importância na corrida, e não se pode dizer que um é mais importante que o outro. Então, têm todos eles o mesmo valor. Digamos, por exemplo, que cada um valha a nota 10. Por outro lado, vamos quantificar o resultado da corrida. Vamos dar peso 3 para o primeiro lugar, peso 2 para o segundo e peso 1 para o terceiro. Todos concordaram. Então, o jóquei que passou a linha de chegada em primeiro, teria 30 pontos, pois sua nota 10, vezes o peso 3 é igual a 30; o seu cavalo fez 10 pontos, resultado de sua nota 10 vezes o peso 1. Somados os pontos do jóquei e do seu cavalo, teremos 40 pontos. O adversário, por sua vez, também alcançou os 40 pontos, pois ambos, cavalo e jóquei, chegaram juntos em segundo lugar, então nota 10 vezes peso 2 é igual a 20; vezes 2, pois são dois animais, igual a 40. Portanto, empate sem direito a recurso. Todos julgaram a decisão sábia, mas nunca mais me convidaram para ser juiz de corrida de cavalos naquela cidade.