CONTOS e CRÔNICAS


Crônica:
O futebol e a violência das massas

Vejo na TV a notícia de um jogo de futebol no interior de São Paulo, interrompido no segundo tempo por causa da expulsão de doze jogadores. Pancadaria generalizada quando um deles sarrafeou um adversário dentro da área e o juiz marcou a penalidade máxima.
O episódio me lembrou fatos de algumas décadas passadas. Tinha eu uns trinta anos de idade e por colega de trabalho um cidadão uns cinco anos mais velho, que era árbitro dos quadros da Federação Paranaense de Futebol. Como não fazia parte da “elite” dos ditos “juízes”, o meu colega era instado a apitar jogos da chamada “suburbana” de Curitiba, onde jogavam equipes amadoras do terceiro escalão para baixo.
Não era raro acontecer a ausência do dito cujo árbitro bissexto ao trabalho nas segundas-feiras. Era sinal de que estava de cama, recuperando-se da pancadaria do domingo. Quando aparecia às segundas, volta e meia o fazia coberto de equimoses, esparadrapos e mercúrio-cromo. Como personagem central das refregas domingueiras entre os esquadrões desta e daquela vila periférica, o meu colega era também uma vítima não circunstancial dos acontecimentos. Na época, o que os torcedores gritam hoje nas arquibancadas e o que os jogadores não dizem (mas pensam) contra os árbitros dentro de campo, era traduzido em bordoadas. Apesar de tudo, muito raramente registrava-se alguma vítima em estado mais grave. E sempre e sempre, no domingo seguinte, estava o meu colega lá, de volta aos “gramados” suburbanos, apito pronto para uma nova guerra futebolística, insensível aos apelos dos amigos e dos familiares para que largasse essa inglória função. Debalde. Ele gostava disso.
Com efeito, o futebol “de segunda linha” da época envolvia paixões hoje transformadas. A rivalidade entre bairros, entre as tribos comunitárias, fazia lembrar os espetáculos do circus romano onde homens e feras se digladiavam para o gáudio de espectadores sedentos de sangue. Espetáculos que foram deixando sementes, as sementes da violência que hoje em dia se manifesta nas guerras entre gangues de adolescentes de periferia (e nem sempre de periferia!), onde se extravasam os ódios interiores, os rancores do cotidiano e as iras existenciais de quem não está em paz nem consigo mesmo. A bem da verdade, nem seria preciso que o circus de Roma deixasse sementes. Elas já vêm incrustadas na alma humana, germes do ódio que gera violência, ainda mais quando somadas no coletivo de grupos e orientadas numa mesma direção.
Desde tempos mais remotos, o futebol serve de canal estravasor dessa sanha sanguinária das multidões comunitárias agregadas em vilas, bairros, tribos, gangues, bandos e torcidas organizadas. Os conflitos de hoje, entre torcedores de clubes de futebol rivais, é a mesma descarga de cólera reprimida que induzia o pau solto correndo nos campos varzeanos de antigamente ou, mais remotamente ainda, que insuflava as massas à violência coletiva por conta de aversões motivadas pelo racismo, pela intolerância religiosa, pelo ódio às minorias ou simplesmente pela inveja de alguma conquista alheia.
É claro que não se justifica a violência, da mesma forma como é difícil encontrar uma explicação para o ódio latente que mora no espírito dos homens. Que, apesar de tudo, existe e persiste e se manifesta à  menor fagulha de conflito que irrompa em situações propícias a uma boa briga. As competições futebolísticas que o digam. Mas são importantes. Se não existisse o futebol haveria mais guerras no mundo.



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Crônica:
Exercício da cidadania, mera utopia?

No ano de 1978 vivi a minha primeira experiência como “líder comunitário”. Hoje essa expressão está em desuso, mas na época era voz corrente entre os políticos, em especial entre os debutantes no processo eleitoral. Ao ponto de virar chacota. Vivia-se então o tempo da famigerada “Lei Falcão”, que instituiu o não menos famigerado “horário gratuito” no rádio e na TV. Na falta de uma qualificação mais consistente, os neófitos, geralmente candidatos a vereador, lascavam o termo “líder comunitário” como atributo essencial para o cargo postulado, uma vez que as suas aparições na mídia não lhes asseguravam o direito de dizer a que vinham, de própria voz, além de lhes ser dedicado um tempo de exposição ridiculamente mínimo. E a expressão, de tão desgastada, acabou virando chacota.
Naquele ano assumi o pomposo cargo de vice-presidente de uma associação de moradores em Curitiba. A experiência se estendeu por um tempo relativamente longo, pois na sequência fui eleito presidente da mesma entidade por quatro vezes consecutivas, totalizando oito anos de mandato, além dos dois anteriores na vice. Permaneci afastado das lidas comunitárias durante alguns anos, mas quando vim morar em São Francisco do Sul a primeira “providência” de alguns amigos que me conheciam da origem foi a convocação para tomar parte na fundação de uma associação comunitária no balneário da Enseada. Participei da fundação da ACEA – Associação Comunitária da Enseada do Acaraí – e dela fui presidente por seis anos.
Não sei se fui bom ou mau dirigente comunitário, isso é meio complicado para se avaliar, pois não há mecanismos de pesquisa suficientemente confiáveis para um levantamento dessa natureza junto a população representada. Ou, se os há, são caros demais para o atendimento às paupérrimas ONGs que se atrevem a atuar na espinhosa área. Se, entretanto, me faltam informações sobre o próprio desempenho, não me falta experiência no setor. E posso adiantar, com razoável autoridade, que não se veem maiores diferenças entre uma comunidade instalada numa praia de Santa Catarina e outra situada na Capital do Paraná. Pelo menos, no aspecto de coletividade.
Entre as mais surradas expressões que um “líder comunitário” ouve está a de que é preciso “mobilizar o povo”, ou “conscientizar a população”, o que, afinal de contas, vem a ser quase a mesma coisa. Esses jargões estão invariavelmente acoplados a qualquer uma das campanhas encetadas por uma ONG comunitária, seja ela a luta por mais segurança pública, a instalação de uma escola ou de um posto de saúde, uma campanha de vacinação ou simplesmente o aumento do número de associados da própria instituição.
É uma tarefa inglória. O cidadão só se conscientiza e, por consequência, só se mobiliza, se a coisa é com ele mesmo. Se for com algum outro, ou mesmo com os outros, esqueça. Pode vir com interesse coletivo, benefício para a comunidade, bem comum, essas coisas, que não funciona. Em cada comunidade de umas cinco mil pessoas, você encontra uns cinco ou seis que vão encarar o desafio e manter-se firmes na luta. Em comunidades maiores a proporção é mais ou menos a mesma. Portanto, na média de um para mil. Muito pouco.
Mas se o assunto for futebol, novela de televisão, show de música (incluindo carnavais e quetais) ou apresentação de artista, a coisa muda. Nada contra o futebol, as novelas, as músicas ou as danças, muito úteis para o arejamento dos espíritos, mas é preciso entender que nem só de circo vive o ser humano. Deve ser por isso mesmo que tudo desanda nesse nosso Brasil, pendão auriverde, pátria amada e idolatrada, salve, salve. Os políticos fazem o que fazem, a corrupção corre solta, nosso sistema de ensino é uma piada, a segurança pública é um caos, a saúde pede socorro, os marajás abundam e os espertinhos mandam nas altas esferas de todos os poderes e a coisa degringola por aí. E o povo, nem aí. A grande maioria ainda não ligou o desconfiômetro que indica o tamanho do rombo no bolso, na alma e na dignidade de cada brasileiro. Vamos continuar esperando que caia a ficha... quando, não se sabe...

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Conto: 
Flagrantes da vida irreal

Dois hipocondríacos se encontram no hospício
- Ei, tu! Por acaso não és o Comandante Gusmão?
- Não senhor. Meu nome é Manuelângelo, português.
- Já se vê. És parente daquele Michelângelo das pinturas?
- Distante. O Michelângelo é do ramo italiano da família. Eu sou de Portugal. E tu, quem és?
- Eu sou a última encarnação do Rei Dom Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal.
- Então és português também, ó pá!
- Agora sou brasileiro de nascimento, mas tenho cidadania portuguesa porque nas três encarnações anteriores nasci em Portugal. Quiseram negar-me esse direito, o que é um absurdo, pois fui o fundador do reino de Portugal. Mas vamos aos fatos: o que estás fazendo aqui?
- O mesmo que tu. Agora mesmo estou a passear pelo pátio desta nobre instituição...
- Vais à comemoração de hoje à noite?
- Estarão a comemorar o quê?
- A morte de um influente político. Esqueci o nome.
- Haverá danças?
- Por certo! Está a vir para cá uma famosa banda, Os Meteoros.
- Não seriam Os Cometas?
- Não, estes já passaram. Agora virão Os Meteoros mesmo!
- E o que comer?
- Ostras.
- Detesto ostras.
- Não será preciso comer as cascas.
- Mesmo assim. Detesto.
- Também não aprecio muito. Mas vá lá... tudo vale a pena quando a fome não é pequena.
- Mas eu não posso ir. Estou com muita dor de cabeça.
- De que lado da cabeça está doendo?
- Do lado esquerdo.
- É sinistrose. Conheço um remédio que é batata.
- Que remédio é esse?
- Já falei.
- Só disseste que é batata.
- Então, pois.
- É batata mesmo?
- Batata.
- E como funciona?
- Isso eu não sei. Deves consultar um médico.
- Já consultei. Mas ele nada me disse sobre a batata.
- Depende do médico. Existem médicos que são contrários ao tratamento com produtos naturais. Esse teu médico, o que receitou para a tua dor de cabeça, a sinistrose?
- Nada. Eu ainda não estava com dor de cabeça quando o consultei.
- E foste consultá-lo por quê?
- Para pedir-lhe uma receita...
- Receita de que medicamento?
- Não sei, ele não me deu a receita.
- Estás numa situação parecida com a minha. Também me doi a cabeça...
- Do lado esquerdo?
- Não. Do lado direito. É a destrose.
- Conheço um remédio que é batata.
- Essa não vale. Fui eu que inventei.
- E foste consultar o médico?
- Fui, mas não me atendeu. Este médico é esquerdista. Só atende pacientes com problemas do lado esquerdo do corpo. Os problemas do lado direito serão atendidos amanhã, por outro médico.
- Voltarás amanhã, então?
- Sim, se as dores não passarem para o lado esquerdo. Se acontecer, precisarei voltar no dia seguinte, quando é plantão do médico esquerdista.
- E se acontecer de novo? Quero dizer, se as dores passarem para o outro lado todos os dias?
- Então precisarei procurar um médico neutro. Um centrista. É muito difícil achar médicos centristas hoje em dia.
- É porque os médicos centristas precisam ter muito equilíbrio. Mas espere, lembrei-me de algo: estive no centro médico por vários dias e o doutor que lá atendida era sempre o mesmo!?!?
- É verdade. E também não é.
- Como assim, não entendo...
- O doutor é o mesmo, mas ele tem dupla personalidade.
- Então está explicado. É uma pena que não tenha tripla personalidade, pois assim poderia ser um centrista também.
- De fato, de fato. Mas dize-me: estás a tomar algum medicamento para essa tua dor de cabeça?
- Sim, claro! Tomo cafeina misturada com lactose.
- E resolve?
- Não resolve nada. mas eu gosto.
- E de que adianta tomar um remédio que não resolve? Só por gostar?
- É melhor do que tomar um remédio que acabe com as dores. Se assim fosse, eu não teria do que me queixar e nem mesmo estaríamos conversando agora.
- É verdade, meu amigo. Mais vale uma dor de cabeça persistente que dois infartos bem curados.

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Crônica:
o outono e os pedreiros
Vinte e cinco de abril. Começa a fazer frio. Nem tanto, por enquanto. O pior ainda virá. Uns treze graus lá fora. Para uma cidade praiana, é bastante. Ou pouco, no caso. O locutor do rádio anuncia: “os termômetros estão marcando treze graus à sombra”. Que sombra? Tudo é sombra, não vimos o sol hoje.
Não apareceu o sol, tudo é a mesma coisa cinzenta; por todos os lados, lá em cima do edifício ou cá embaixo no nível da rua, tudo cinzento, tudo sem cor. Imagino que haja necessidade de sol ou, pelo menos, de luz, para haver sombra. Mas cadê o sol, cadê a luz?
Não estamos no escuro, é verdade. Mas a luz que envolve todas as coisas é vaga, diáfana, etérea. Vem de não-sei-onde, não tem origem definida. Parece que o sol se partiu em milhões de pedaços, cada um deles emitindo mixurucas raiozinhos de luz e calor. Fracos e insuficientes raios de luz e calor, que não iluminam e nem aquecem o ambiente de modo a satisfazer os homens.
Horas de outono. Horas frias, lentas, friolentas, sem ânimo, sem cor.
As árvores estão deixando cair as folhas. Caem, descem, dançam no ar, agitadas pela brisa fraca. Folhas fracas. Tudo fraco.
Os homens recorrem aos agasalhos, aos capotes. Andam embrulhados, mãos nos bolsos. Os homens de vestem e as árvores se despem. Curioso contraste.
Horas de outono, Outono frio. A cidade se ilumina mais cedo, tentando compensar a preguiça do sol. Luzes de acendem por todos os cantos, na tentativa – fraca tentativa – de aconchegar e acalentar os homens. Fracos homens.
Este outono está chato e feio, como chatos e feios foram todos os outonos que vivi até hoje. Já são sessenta e sete. Já entrei na idade de contar os anos pelos outonos, apesar de fazer aniversário em pleno inverno. Contar os anos de vida pelos invernos fica mais chocante: “fulano completou sessenta invernos”. Já que a idade dos jovens é balizada pelas primaveras – “Patrícia comemora quinze primaveras” – sujeitos com a minha idade devem referir seus anos de vida pelos outonos, fica mais adequado.
A primavera é a estação do perfume, das flores e das cores, da juventude, da alegria e dos cantos de passarinhos. Não é compatível com nós outros, que já estamos deixando cair as folhas, já entramos no retrocesso da vida. Portanto, estou às vésperas de comemorar sessenta e oito outonos.
Comemorar, sim! Diferentemente do início do século passado, nos tempos atuais não é mais incomum ser um sexagenário. É no entanto um privilégio, tanto outrora como agora. Certamente agora ainda mais, pois antigamente não se contava com as maravilhas que a moderna tecnologia nos proporciona. Com certeza a vida pós-sessenta de antanho era mais sofrida, mais penosa. Toda essa parafernália de recursos que torna a vida moderna mais confortável e animada faz com que o nosso cotidiano esteja mais para as primaveras do que para os outonos. E, como sempre, a nossa experiência de vida contribui para dar um colorido ainda mais especial às nossas ações e atitudes.
Um cidadão com mais de sessenta anos, hoje em dia, pode até se considerar meio profeta. Consegue antever o desenvolvimento – e o comportamento – de certas áreas, como as condições climáticas e as atividades políticas, por exemplo. Está certo, antigamente os homens experientes também sabiam se ia chover ou não, mas os partidos políticos, estes sim, eram mais simplórios há cem anos e, por uma estranha contradição, menos previsíveis. Talvez porque mais autênticos. Se os políticos de hoje existissem no fim do período imperial, o Marechal Deodoro jamais teria proclamado a república, por um simples raciocínio: ao invés de deixar a Nação nas mãos de um monte de patetas, seria melhor que ficasse sob as ordens de um pateta só. Enfim, a proclamação seria um caso fortuito, supérfluo. De qualquer forma a Nação sobreviveria, como sobreviveu. E Dom Pedro de Órleans e Bragança seria hoje o nosso rei, e o Lula teria que se conformar em ser o primeiro ministro. Vantagem para ele, que poderia ficar no poder quantos anos quisesse (ou quantos o monarca o aguentasse).
Mas voltemos aos macróbios. Sim, há certas coisas que não mais devemos fazer, os riscos de acidentes ficam maiores. Eu mesmo já desisti de fazer reparos domésticos depois que desferi uma martelada na própria testa. Problema de reflexos. E de noções de tempo-espaço também. Talvez não ocorra com todos, mas ninguém pode dizer que está imune. Sempre tem uma primeira vez. É sim, fica perigoso. Mas a experiência compensa as limitações físicas e transcendentais, desde que você consiga achar um pedreiro que não seja teimoso. Assim, trabalhando a quatro mãos – não, seria melhor a duas mãos e uma cabeça (ou a um cérebro, melhor ainda) – as coisas andariam melhor.
Mas o diabo é achar um pedreiro que perceba que o raciocínio deve fazer parte do trabalho!

Conto
A janela indiscreta
          Criar filhos tornou-se um autêntico desafio. Não tanto pelo fator econômico, pois as famílias, de forma generalizada, têm hoje melhores condições financeiras para assumir os compromissos que decorrem da formação de uma criança. As dificuldades decorrem principalmente da conjuntura social, que envolve desde a educação familiar até o envolvimento paterno – e materno – no contexto da sociedade, incluindo trabalho, estudos, transporte, lazer e os afins concernentes. Em português mais claro, tudo ficou mais difícil porque antigamente a educação caseira era mais severa e coercitiva (se o/a pirralho/a pisasse fora da linha era castigo inescapável), a mãe dedicava-se especifica e exclusivamente aos cuidados domésticos e à criação/educação da prole, o pai tinha menos compromissos sociais e por aí vai...
          Hoje, como todos sabem, a educação familiar é mais amena, as mães trabalham fora, os pais têm compromissos além dos profissionais, a própria locomoção urbana requer tempo adicional – nem sempre pouco –, além do que, em muitos, muitos casos, pai e/ou mãe ainda se dedicam a estudos, tanto nos currículos normais como nos de especialização ou qualificação profissional e ainda naqueles totalmente inúteis. Como consequência, a maioria dos casais hoje tem um filho ou dois, raramente três e nunca mais do que isso. Como em toda regra, há exceções.
Os pais de Marcelo não se encontram na exceção. Por isso mesmo, Marcelo cresceu sozinho. Sem irmão ou irmã, o pequeno foi alvo de todas as atenções paternas e maternas, dentro do possível e do que permitia o já abordado envolvimento social de ambos – convenientemente situado na faixa média da média do contexto social que os envolvia. Marcelinho tinha praticamente tudo o que uma criança podia precisar na primeira infância: muitos brinquedos, boa roupinha, escolinha maternal, uma babá para as “horas de folga”, passeios com papai e mamãe (quando os compromissos o permitiam) e a indefectível badalação da parentela.
          Marcelinho foi crescendo até além do ponto de perder o “inho”. Desenvolveu-se rápido, foi ficando grande e forte, tornou-se Marcelo mesmo, até para a dupla paterna. Na medida em que acrescentava algarismos à idade foi galgando a escadaria da educação escolar, sem tropeços ou abalos significativos. Também sem nenhuma distinção especial. Não se interessou muito por esportes. A orientação paterna talvez não tenha encontrado eco na vocação do menino: as aulas de natação, de tênis e de ginástica não repercutiram no espírito infanto-juvenil de Marcelo. O pai não era chegado a esportes coletivos e a conseqüência foi o confinamento do garoto à única prática esportiva que efetivamente abraçou: a gastronomia. Como resultado, o crescimento físico aconteceu por todos os lados, com destaque para os laterais, tornando-se assim um típico modelo para a teoria que defende a adoção de hábitos alimentares mais saudáveis como prevenção da obesidade geral da população. Infelizmente os pais não acordaram para a possibilidade de encaminhar o filho a uma academia de sumô, pois este esporte passou a ser, pelo menos aparentemente, o mais indicado para o desenvolvimento físico do menino-moço. Por outro lado, a escalada etária lhe proporcionou novos relacionamentos, não só no âmbito escolar como também no social, embora neste último de forma bem mais modesta. E foi justamente no contexto das amizades escolares que se deu a estréia de Marcelo na vida sexual.
          Transcorria fogosamente o segundo ano do ensino médio, Marcelo por volta dos treze anos de idade, os coleguinhas mais ou menos na mesma. No colégio havia uma sala de despejo, situada fora do prédio principal e dele razoavelmente afastada, um depósito de toda sorte de entulhos e velharias, carteiras, cadeiras e mesas esperando por reforma, materiais esportivos e uma grande quantidade de etecéteras. Certo aluno de ano mais avançado conseguiu, como foi ninguém sabe, uma cópia – ou seria a original? – da chave da dita cuja sala e para lá atraiu um grupo de colegas para reuniões furtivas nos intervalos de recreio. Os grupos eram sempre de quatro ou cinco meninos, mesmo porque a escola era exclusivamente para alunos masculinos. Um belo dia convidaram o Marcelo, que assim foi “iniciado”. A grande atração das assembléias assim formadas era o compartilhamento do conteúdo de revistas pornográficas, contrabandeadas pelos mancebos. Também nunca se soube da origem de tais publicações. Paralelamente, rolavam as funções sexuais, embora não se tratasse, como pode parecer à primeira impressão, de práticas homossexuais, nada disso. Eram todos machos, machos de carteirinha, pelo menos assim se consideravam. Mas rolava o sexo individualizado, manual mesmo, porque outra forma não havia, nem mesmo uma cabritinha pelas redondezas – e se houvesse e fosse convocada, provavelmente à revelia, a possibilidade de um rebu inusitado seria muito grande. Por isso, o mais prudente era mesmo a prática à boca – perdão, à mão – pequena. Inspiração não faltava àquelas mentes adolescentes, ainda mais com os incentivos extras proporcionados pelas revistas e pelas fotografias estimulantes. E ao cabo de algumas “sessões” Marcelo, treze anos, se tornou um “expert” no assunto.
          Por inglório deslize, esqueceu-se de registrar que a família de Marcelinho morava em apartamento. Em bairro de classe média alta, um conjunto de duas torres num mesmo condomínio com piscina, parque infantil – inconvenientemente chamado de “play-ground” –, academia de ginástica, salão de festas, salão de jogos e tudo o mais. Pois nesse ambiente Marcelo, certo fim de tarde, isolado em seu quarto no apartamento do sexto andar, fez uma interessante descoberta: na torre em frente uma garota trocava de roupa sem o devido cuidado de baixar a protetora cortina. Olho vivo e estalado, Marcelo acompanhou com singular interesse os movimentos da moça. Provocativos, ou talvez nem tanto, mas a imaginação do mancebo se encarregava de entendê-los assim, de forma que estava pronto o cenário para um bom ato sexual, tal e qual ele havia aprendido na escola.
          Essa foi a primeira vez. Houve mais: no dia seguinte, a moça repetiu a encenação, visivelmente ciente da espreita do jovem Marcelo, circunstância que a animou a produzir cenas ainda mais provocativas. Embora jamais se apresentasse totalmente desnuda, a tchutchuca fazia o rapazote ir à loucura, as cenas insinuantes o estimulavam crescentemente, e dê-lhe sexo – tal e qual havia aprendido na escola. Nos dias que se seguiram Marcelo chegou a cabular a aula para permanecer de sentinela, firme e resoluto, desde a manhã, na esperança de vislumbrar a amada por um espaço maior de tempo. Para a criada/cozinheira, desculpou-se alegando uma indisposição para a qual já tomara um analgésico, como pretexto para permanecer no quarto ao invés de se dirigir ao colégio.
          Foi infrutífera a vigilância de Marcelo, eis que a cena não se concretizou durante a manhã, a não ser na mesma hora de sempre, ao fim da tarde, em período tal que os pais não se encontravam em casa e tampouco a criada, já afastada das lidas àquelas horas. Somente Marcelo no apartamento, parecia proposital a situação. No fim de semana a moça não deu o ar da graça.
          O menino-moço não se agüentava mais de agitação e alvoroço. No começo da semana seguinte mal assistiu às aulas, estava com o pensamento longe. Na segunda e na terça-feira o episódio se repetiu, incluindo a corrida para o banheiro. Na quarta-feira, Marcelo não mais segurou o segredo: abriu-se com um colega mais chegado, um dos mentores das aventuras na sala de despejo. Fabrício vinha de família abastada, pai industrial e mãe personagem assídua das colunas sociais. Os dois moços, Marcelo e Fabrício, arquitetaram um plano para, em dupla, espiarem as peripécias da fogosa vizinha. Os pais de ambos foram avisados de que tinham eles a incumbência de preparar determinado trabalho escolar, para o que teriam de atuar em conjunto, sendo o apartamento de Marcelo escolhido para a tarefa. E, ainda na quarta-feira, lá ficaram ambos à espreita, munidos de um potente binóculo, providenciado pelo diligente Fabrício. Com efeito, a dengosa e insinuante garota apareceu na hora de costume para a lasciva função. Mas se retraiu após alguns minutos, ao perceber que não estava sendo observada por um garoto, mas por dois. E de binóculo, ainda por cima! Correu as cortinas e fim do espetáculo.
          Apesar da deserção do objeto da contemplação, Fabrício entusiasmou-se diante do fugaz aparecimento, que lhe serviu para alfinetar a lascívia – e também a imaginação, naturalmente. Tanto é que, na manhã seguinte, planejou a ação para a parte da tarde: com o irmão mais velho conseguiu uma filmadora profissional, de enorme alcance, alta definição e outros atributos mais. Ele próprio não apareceria na janela. Ficaria num quarto contíguo, às escuras, atrás das cortinas, câmera a postos e todo um aparato para retratar a misteriosa beldade. No quarto de Marcelo apenas o próprio, como na semana anterior, apreciando “solitário” a desenvoltura erótica da moçoila. Assim planejado, passaram à “continuação do trabalho escolar” e se posicionaram convenientemente nas horas que antecederam o ansiado espetáculo.
          Como se estivesse combinado, na hora de costume a beldade deu o ar da graça. Mais uma vez deu curso à encenação, caprichando nos detalhes voluptuosos para aguçar os sentidos do menino-moço Marcelo com fosquinhas provocativas, como que a desafiá-lo a atitudes mais extremas. No quarto escuro, Fabrício a custo continha os efeitos do êxtase extremado, congratulando-se por ter deixado bem firme a filmadora sobre o tripé e devidamente acionada para registrar fielmente toda a lúbrica aparição.
          Ao cabo de uns quinze minutos, a donzela exibicionista deu a função por encerrada. Os dois infantes, qual esportistas apaixonados, passaram a discutir acaloradamente os lances da faustosa encenação, abstendo-se, porém – e surpreendentemente – de prosseguirem em suas lucubrações sexuais nas respectivas  intimidades individuais. Abstenção apenas temporária, porque no dia seguinte reuniram-se novamente os dois rapazotes, agora no apartamento dos pais de Fabrício, ainda para darem prosseguimento ao “trabalho escolar”. A ávida verificação da gravação das cenas do dia anterior absorveu todo o temp disponível e foi fundamental para a retomada dos pendores lascivos da dupla, que enfim pode satisfazê-los sem maiores sentimentos de pecabilidade. Após terem se exaurido no desfrute das cenas registradas na véspera, os moleques mostraram a gravação ao irmão maior do Fabrício, aquele que fornecera a filmadora, o qual imediatamente confiscou o tesouro alegando o desejo de mostrá-lo aos amigos.
Nos dias seguintes – fim de semana – a aparição da moça não era mesmo esperada, mas nos subseqüentes, Marcelo e Fabrício, diligentemente empenhados na continuidade das obrigações educacionais e para tanto reunidos novamente no cenário da representação, estranharam a ausência da musa. Não só a ausência, mas também o aparente esvaziamento daquele apartamento, constantemente de cortinas cerradas e sem nenhum indício de presença humana.
Surpresa maior, entretanto, teve o pai de Marcelo no meio da semana quando, em pleno escritório, no seu ambiente de trabalho, recebeu a visita de um oficial de justiça intimando-o a comparecer na Delegacia do Distrito Policial para o esclarecimento de uma denúncia de invasão de privacidade supostamente ocorrida no conjunto residencial em que ficava o seu apartamento. Sem saber do que se tratava, lá foi o preocupado executivo. Na DP, viu-se confrontado com uma gravação de vídeo em que aparecia uma garota em poses e movimentos sensuais e significativamente eróticos. Informado que tal gravação foi postada numa rede social na internet e que teria sido obtida a partir do seu próprio apartamento, o homem também tomou conhecimento de outros detalhes da história, entre os quais a intenção da pessoa pretensamente prejudicada em ajuizar contra ele uma ação de indenização por danos morais. Pondo a imaginação a trabalhar, logo concluiu que a trapalhada tinha algo a ver com o empenho da dupla de jovens no preparo do “trabalho escolar”, uma vez que datas e horários conferiam.
De volta à casa, o pai não teve maiores dificuldades em obter a confissão do Marcelo. Ressabiado, o garoto explicou os pormenores da aventura e soube do pai as informações recebidas na Delegacia. O mancebo só ficou efetivamente indignado quando soube da identidade da misteriosa personagem filmada nas suas insinuações libidinosas, a qual trazia de berço o revelador nome de Alexandre Augusto da Silva.


Crônica

Os ostracistas
 Em fins de agosto do ano passado, estava eu exercendo uma função pública em um dos chamados cargos de confiança e repentinamente me vi transferido para o Departamento de Ostracismo. Passei a exercer um cargo de desconfiança. Toda administração que se preze, especialmente no caso das públicas, tem o seu Departamento de Ostracismo. Em alguns lugares o Departamento de Ostracismo é conhecido por geladeira. Por razões estratégicas – às vezes óbvias, às vezes nem tanto – normalmente esses órgãos são secretos. São constituídos por aqueles profissionais, geralmente qualificados, que, por um ou outro motivo, entraram em rota de colisão com o (ou os) mandachuva(s) de plantão, o(s) qual(is), também por um ou outro motivo, não quer(em) perder um ou outro apoio político – o que poderia ocorrer se optasse(m) pela transferência direta dos ostracistas para o olho da rua.
O trabalho dos ostracistas é penoso. Só mesmo outro ostracista pode avaliar a penosidade dessa função. No meu caso, tenho a companhia de outro colega. Nós nos ajudamos mutuamente. Ele fica numa sala contígua à minha. Nosso Departamento não tem chefia. Ele é o meu contíguo e eu sou o contíguo dele. A solidariedade entre os ostracistas – embora nem sempre alcançada – é essencial para o bom andamento do serviço. No nosso caso, o serviço anda bem.
Diferentemente do que possa parecer aos leigos, o ostracismo nada tem a ver com ostras. Pelo menos, não com as autênticas, talvez alguma coisa com as figuradas. No ostracismo, as ostras são outras. Mais duras, muito mais duras. Ostracista que se preze não engole sapos, engole ostras. Com carapaça e tudo.
Estou seriamente pensando em criar o Sindicato Nacional dos Ostracistas. Sinaostra, que todo sindicato que se preze tem o seu nome de fantasia. Como a função de ostracista é restrita a certos profissionais e o numero deles não é muito significativo em cada administração (pelo menos, imagino isso – e, aliás, isso depende de cada administração), a idéia é fundar, de início, o sindicato com base territorial nacional. Na sequência poderia haver uma divisão, ou mesmo uma subdivisão do sindicato. Seria então criada a Fenaostra – A Federação Nacional dos Ostracistas, congregando todos os sindicatos da categoria.
Como todo sindicato efetivamente funcional, o Sinaostra teria o seu rol de reivindicações, a ser negociado com o sindicato patronal. Ainda não sei quem seria esse sindicato patronal ou quem o representaria, mas isso não vem ao caso. O importante é ter as reivindicações e divulgá-las. Usar a mídia o mais possível, fazer passeatas e greves, acusar o governo de insensível aos anseios da categoria, e assim por diante.
O rol de reivindicações teria alguns itens óbvios. O reajuste salarial, por exemplo, num percentual tal que cobrisse todos os anos passados sem o devido reajuste com base nos índices oficiais ou extraoficiais da inflação. Se uns tiveram reajuste nos anos passados e outros não, isso não importa. Aliás, até é bom que seja assim. Calcularemos o reajuste com base naqueles que não tiveram reajuste algum. Ganho real é outro item importante. Se a renda de todo o conjunto da sociedade está aumentando, a dos ostracistas não pode ser ignorada, sob pena de marginalização (desculpem a redundância) da categoria. Auxílio penosidade também precisa ser considerado. Os que duvidam das dificuldades dessa nobre função deveriam experimentar. Engolir ostras – com casca e tudo – é penoso pacas. Enfim, a pauta de reivindicações seria ainda completada numa série de assembléias estaduais a serem convocadas oportunamente e aprovada em discussão final numa assembléia nacional. Outros itens entrariam, certamente. Redução da jornada de trabalho, férias de 60 dias – isonomia com os parlamentares, nada mais justo! – e pagamento de horas extras com duzentos por cento de acréscimo, seriam pontos fundamentais que jamais poderiam deixar de integrar uma pauta de reivindicações digna do nome. Ah, quase ia esquecendo: não podemos dispensar o recebimento da nossa fatia do imposto sindical, claro!
Desde já coloco o meu nome à disposição para liderar o Sinaostra – e também a Fenaostra, assim que forem criados. Será um sacrifício ainda mais penoso que o próprio exercício da função, mas em nome dos supremos ideais da categoria eu sou capaz desse gesto de desprendimento, sujeitando-me a viajar pelo Brasil afora à custa da novel – e nobre – categoria profissional, acompanhado dos indispensáveis assessores e secretários (secretária, de preferência).
É uma pena que hoje eu já tenha sido transferido para o Departamento do Pé-na-Bunda. Mas não tem problema. Como ostracista aposentado também tenho o direito constitucionalmente garantido de continuar pertencendo à categoria. Aliás, as transferências dos Departamentos de Ostracismo para os Departamentos do Pé-na-Bunda precisam também ser discutidos em assembléia nacional. Vamos lá, a luta continua, companheiros
Imagens: Obvious (http://obviousmag.org) e Pitoresco (http://www.pitoresco.com.br)

Crônica
Nos anos de plum-bum
Eram cinco ministros militares: o do Exército, o da Marinha e o da Aeronáutica. Mais o Ministro da Casa Militar e o Ministro do Estado Maior das Forças Armadas. Eventualmente, o Ministro da Casa Civil em certa época também foi um militar, o Golbery, a iminência parda. E mais um ou outro por aí, como, exemplificando, o Cesar Cals no Ministério dos Transportes, o Nei Braga no da Educação, etc, etc. Civil em cargo militar, nem pensar, era heresia. Mas militar em cargo civil podia. Não só podia como era preferível. Para militar, civil era sinônimo de imbecil. Rima, pelo menos.
No governo do Jango eu era neófito em política, pouco antes dos vinte anos de idade. Início da década de 60, militava no partido do Presidente, o Partido Trabalhista Brasileiro, PTB, partido do Brizola, fundado por Getúlio Vargas. Trabalhava em jornal: repórter, redator. Tinha começado uns seis meses antes como revisor gráfico. O patrão descobriu minha facilidade com as letras quando o pessoal da oficina veio se queixar de mim, acusando-me de alterar os textos mandados pela redação. Como eu lia tudo – por força do ofício – e redator também erra, eu corrigia aquilo que achava errado. Era o tempo das linotipos. E os textos que vinham para a revisão vinham linotipados, naturalmente. Os linotipistas ficavam uma arara (uma arara cada um, que o computador já está me corrigindo!) “Tá certo, vocês têm razão, mas o texto tá errado. Tá certo mas tá errado”. Como explicar para os linos? Foram ao chefe. Mostraram os originais, a matéria linotipada e as minhas correções. O chefe me chamou:
- Foi você que alterou esses textos?
- Foi, chefe.
- Quero que escreva um texto pra mim. – Chamou o chefe da reportagem:
- Você cobriu aquele acidente de carro hoje de manhã, Calegari?
- Sim, chefe, fui com o Carazzai. – Carazzai era fotógrafo e “chefe” era o tratamento generalizado em referência ao patrão, proprietário e diretor do jornal (hoje seria chamado de CEO).
- Então passe os dados e as fotos para o Otto. – E, dirigindo-se a mim:
- Quero um texto-legenda para a primeira página. – Na época, acidente de carro dava manchete de primeira página em jornal do interior, mesmo sem vítimas fatais. Tinha pouquíssimos automóveis nas ruas.
Com os dados do Calegari escrevi o texto, escolhi a foto, levei para o chefe. Ele leu e perguntou:
- Você também escreve textos comerciais?
- Nunca escrevi, mas posso tentar.
- Então escreva um anuncio procurando outro revisor. Você passa para a redação.
Por que abri essa matéria falando do golpe militar? O jornal inteiro, do chefe ao ajudante de oficina, era tudo PTB. Todos roxos, convictos.
Veio o golpe, apelidado de revolução. O chefe foi em cana, o chefe da redação também, o Callegari se mandou – até hoje não sei para onde –, o velho Luiz Gouvêa, patriarca dos redatores, idem, idem. Sobrou até para o Carazzai: voltou para Curitiba, enfurnou-se nalgum estúdio fotográfico. O jornal só não fechou porque era o mais tradicional da cidade, podia pegar mal. Então fizeram um acordo com o chefe: ele vendeu o jornal, para todos os efeitos. Assumiu uma turma da direitona.
Podem me chamar de frouxo, de bundão, mas eu não tinha opção. A família dependia da merreca que eu ganhava. Aguentei o tranco, fiquei no jornal. Passou algum tempo e, na primeira oportunidade que me deram para escolher, preferi ficar só com o setor de esportes. Já tinha cansado de tirar fotografia de malandro em pose de vestal nos palanques da ditadura. As fotos até que não eram o pior. Pior mesmo era ter que descrever o heroísmo de tais personagens. E, ainda por cima, promover o “ouro para o bem do Brasil”, a primeira campanha pilantrópica da “revolução”, em que pais de família sem dinheiro para comprar um pé de alface tiraram as alianças dos dedos para “ajudar o Brasil” (quem viveu, lembra – mas aí já é outra história!)
Fiquei nos esportes trabalhando 363 dias por ano. Folga só no dia do Natal e na Sexta-feira Santa. Fiz de tudo para melhorar o cascalho: expediente extra, anúncios, viagens, reportagem, redação, fotografia, edição de suplemento... até vendi jornal na rua.
Quando surgiu a oportunidade, prestei concurso para importante empresa paraestatal. Passei! Pirulitei. Adeus jornal, adeus jornalismo. Adeus política também, embora desta eu já tivesse me despedido antes. Fiquei trinta anos hibernando politicamente. O tempo da “revolução” e mais um pouco.
Reminiscências do tempo do Jango: o país, na época, não era nenhuma Suécia, tinha suas mazelas, muitas delas, mas todas elas somadas certamente não representariam mais do que um arbusto na selva de malandragens e falcatruas que grassam no Brasil de hoje. Tempos eram em que não havia Lei de Licitações, Lei de Responsabilidade Fiscal, não tinha ECA nem nada dessas baboseiras que burocrata inventa para justificar o cargo e que servem menos de defesa contra as maracutaias e mais de biombo para ocultá-las. Não se viam tantas falcatruas em obras públicas, não havia mensalão, a renda dos deputados não era imoral e político não viajava em avião de empreiteiro. Hospitais não vazavam pacientes pelo ladrão, aluno não xingava nem batia em professor, polícia não matava tanta gente na rua e vereador não tinha salário. Crianças saiam do curso primário (quatro anos de estudo) sabendo ler, escrever e fazer contas. Jornalistas terminavam o curso superior com ideias na cabeça e talento na escrita e a OAB não submetia os advogados a um exame porque eles aprendiam o que precisavam nas aulas da faculdade. Talvez por isso tudo veio o golpe. Tem gente que não suporta viver num país sem pilantragem.


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Crônica
Na era da internet
Já escrevi que antigamente, se alguém cogitasse ter um computador em casa seria tomado por cientista ou por maluco de carteirinha. Doido varrido, no mais das hipóteses. Onde já se viu? Dizer que poderíamos – mesmo que num futuro remoto – acompanhar as previsões do tempo, comunicar-se com outras pessoas, encontrar endereços ou mesmo fazer compras, tudo isso pelo computador, seria tomado como grave heresia.
Lá pelos fins da década de 80 e começo da de 90 (do século passado, que fique bem claro!), tomei conhecimento da internet. Foi uma noção meio superficial, mas acabei formando uma idéia mais ou menos razoável a respeito da coisa. Comentei o assunto com uma colega advogada. Na falta de exemplos mais sugestivos, expliquei:
- É uma tipo de rede de computadores que qualquer pessoa pode acessar, desde que tenha um computador e ele esteja ligado numa espécie de computador-mestre, que é chamado de “servidor”. Se você tem esse acesso, pode divulgar qualquer arquivo seu, um documento, uma tese acadêmica, por exemplo, que ficará arquivado na rede. Qualquer um que também tenha o acesso pode ver o seu documento. E você também poderá ver o que os outros tiverem arquivado na rede...
E ela, de pronto:
- Que coisa mais sem graça...

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Crônica
Um dedinho na seleção
Não sou cronista esportivo, nem pretendo sê-lo (embora em épocas priscas já o tivesse sido). Mas um assunto me chamou a atenção nesta quinta-feira. Mais exatamente, foi uma suspeita, levantada por alguns profissionais da área: a do envolvimento de empresários na escalação da seleção brasileira de futebol que faz amistosos na Europa. A suspeita de que o técnico da seleção tem o rabo preso com um empresário é coisa séria, não só porque afeta um enorme universo de pessoas e de interesses, mas porque – principalmente – fere os brasileiros num de seus mais caros emblemas: o futebol e a sua seleção nacional.
Com efeito, não se pode, em sã consciência, admitir que o interesse particular de empresários nem sempre escrupulosos interfira na seleção brasileira de futebol. Ainda por cima, mexendo diretamente na escalação da equipe, forçando a entrada de um atleta de talento sabidamente inferior apenas para valorizá-lo com vistas a futuras transações milionárias.
Não existe um só ser humano no mundo que esteja isento de vínculos. Podem ser de diversos gêneros: vínculo social, vínculo político, vínculo familiar, vínculo afetivo, etc, etc... Na maioria dos casos, vínculos são frutos de relacionamentos sérios e desinteressados. Mas existe o outro lado da moeda. Quando entra o interesse financeiro na jogada, efeito da famigerada ambição humana, a coisa muda de figura. Vínculo é uma coisa, rabo preso é outra... Rabo preso, expressão popular usada de forma pejorativa, designa um vínculo de compromisso, geralmente escuso.
O mundo do futebol é, sabidamente, um universo milionário. Um universo que atrai interesseiros como atrai moscas certa substância que cheira mal quando revolvida. Não houvesse tanto interesse suspeito nesse universo certamente teríamos uma orientação diferente na Confederação Brasileira de Desportos, uma direção intolerante com técnicos de relações duvidosas. Essa insuspeita direção certamente nomearia um técnico deveras independente, nem que seja ele o Mané dos Anzóis, treinador de algum time da quinta divisão, desde que integro e sem comprometimento escuso. A seleção até poderia perder jogos, mas perderia com dignidade e impondo o respeito que nem sempre consegue exigir. E os brasileiros poderiam voltar a olhar a sua seleção com aquela ponta de orgulho que está sendo jogada pela janela.

Crônica
Na era do computador
Quando criança eu não sabia o que era um computador. Na verdade, ninguém sabia. Ninguém do “comum do povo”, segundo a expressão que se usava. Alguns especialistas e estudiosos, sim. Tinham alguma noção, pelo menos.
A mim sempre pareceu, naqueles tempos, que computador era uma enorme máquina de fazer contas. Complicadíssimas, claro. Coisa de cientistas ou de grandes empresas, para calcular coisas como o tamanho das galáxias, a distâncias entre estrelas e algumas outras do mesmo gênero, como fazer a contabilidade dos bancos, por exemplo.
Naquela época, quando alguém dizia que iria “entrar no computador” a expressão podia ser tomada ao pé da letra.
Jamais passaria pela cabeça de alguém que um belo dia as pessoas viriam a ter computadores em casa. Eu ainda era jovem quando vi um anuncio numa revista que dizia (não “dizia”, estava escrito, claro!) mais ou menos isso: “Se você acha que a sua empresa é muito pequena para ter um computador, é porque ela deve ser pequena mesmo!”
O reclame (era assim que se dizia) me impressionou, mas fiquei imaginando por que uma pequena ou média empresa podia querer um computador. Afinal, computar o quê? Cálculos complexos só iriam interessar a empresas de grande porte, multinacionais, bancos, etc.
Quando fui convidado pela primeira vez para conhecer um computador, só mostraram a impressora e a perfuradora de cartões. Os computadores funcionavam assim, antigamente, com cartões perfurados. A impressora tinha o porte de duas máquinas de lavar roupa, colocadas lado a lado. O computador propriamente dito ficava numa sala grande, sem janelas e com a porta hermeticamente vedada, cujo acesso era terminantemente proibido, a não ser para os técnicos e para o pessoal especialmente treinado. Era uma sala com ar condicionado, temperatura controlada, excepcionalmente asséptica, esterilizada, fiquei pensando que as pessoas que entravam lá teriam que usar máscaras ou algo parecido com escafandros. Uma vez lá dentro seriam impedidas de falar. Evidentemente, nossa entrada não foi autorizada (estávamos num grupo de umas quinze pessoas). Também mostraram o arquivo de “fitas magnéticas e disquetes” com coisas já gravadas. O cicerone se achava a pessoa mais importante do mundo e repetia a toda ora que era um “engenheiro de computação”. Coitados dos pobres mortais que não entendiam nada da nobre atividade computacional!
No fim da visita, o doutor sabetudo foi à impressora, digitou alguns comandos num painel e a máquina começou a matraquear num formulário de folhas contínuas um mosaico de caracteres que reproduziu o rosto de Jesus Cristo. Deu uma cópia para cada um e a exposição por encerrada.
Ficamos todos impressionados, mas continuamos não entendendo bulhufas de computadores.


Crônica
As lições de Fedro
Estou cercado por notícias dando conta do massacre de dezenas de pessoas na Noruega, perpetrado por um terrorista de extrema direita, Anders Behring Breivik, que mistura crendices religiosas, fobia por estrangeiros – especialmente muçulmanos – e mais algumas esquisitices parecidas. Esse noticiário repercute na TV, nos jornais e nas emissoras de rádio, só perdendo em profusão para o caso da morte da cantora maluquete Amy Winehouse. Entre essas duas ocorrências há muita coisa em comum.
Há quase 2.500 anos, o filósofo grego Platão registrou um diálogo chamado Fedro, em que defende a tese segundo a qual todo ser humano tem uma alma – na concepção moderna seria correto chamá-la consciência – que é, por sua vez, constituída por três forças distintas, sendo uma delas racional e as outras duas, irracionais: a irascibilidade e a concupiscência. Para ilustrar essa tese, Platão narra um mito, comparando a alma/consciência a uma carruagem puxada por uma parelha de cavalos, sendo um deles dócil (a irascibilidade, que tem por função principal cuidar do cumprimento das intenções da alma racional) e o outro bravio e rebelde (a concupiscência). Cabe ao cocheiro, que faz o papel da razão, conduzir a carruagem num rumo correto, pois o cavalo bravio tende a levar o veículo para o lado das coisas ruins e das práticas maléficas – como os vícios, as orgias e as perversões –, enquanto o outro (cavalo) se deixa conduzir com tranqüilidade, inclusive ajudando o cocheiro a dominar o seu companheiro arruaceiro quando isso se faz necessário.
Fazendo um paralelo entre o mito de Platão e as estripulias do terrorista Anders Breivik, concluímos que o cavalo bravio da consciência dele acabou arrastando a carruagem para os lados do mal. Seu cocheiro não teve a competência necessária para conduzir o veículo de acordo com as normas estabelecidas pela consciência racional. No caso de Amy Winehouse o problema foi o mesmo.
Conclusão: os dois são (foi, em relação à Amy) malucos de carteirinha. O pior é que tem mais alguns por aí.

Crônica
Ah, memória!

Vira e mexe sou obrigado a usar uma senha para fazer certas coisas: para usar o caixa bancário, para acessar a minha correspondência eletrônica, para ouvir música no computador portátil, para pagar compras feitas pela internet, para usar meus cartões de crédito, para... enfim, para tudo, hoje em dia, usam-se as malfadadas senhas. O pior da história é que, em muitos casos, você não pode inventar a senha, “eles” não deixam. E vão empurrando códigos estrambólicos, de memorização quase impraticável, e ai de você se esquecer... Deviam deixar a senha a critério de cada cidadão, e assim todos criariam um código que poderia ser o mesmo para todos os casos. Seria um código pessoal, assim como a assinatura. A maioria das pessoas tem uma assinatura só e o mesmo critério seria usado para o caso das senhas. Obviamente, quem quisesse, adotaria mais de uma delas, ou uma diferenciada para casos específicos.Enfim, seria um problema de cada um.

Do jeito que é hoje, o uso das senhas torna-se um martírio. Como já escrevi aí em cima, a memorização delas é quase impraticável – quando não o é de todo. Anotar as senhas num lugar qualquer implica em riscos, o que não é recomendável. Mas é a saída, em todo caso. Foi o que fiz recentemente: anotei todas as senhas num papel e o guardei a sete chaves, longe do alcance de estranhos. E longe do alcance da minha pobre memória também, pois de tão bem guardado o papel, eu mesmo não me lembro mais onde foi deixado. Nem São Longuinho pode me ajudar...
Paciência. Vamos continuar às voltas com as senhas...

Conto:
Marézio e Juvênia
Não nasceu na roça, como se costuma dizer. Nasceu na cidade, numa maternidade. Mas nasceu com um pé na roça. Com um pé não, com os dois. Desde que aprendeu a andar, um ano e dois meses de idade mais ou menos, Juvênia pôs os pés na terra, na grama, no mato, no barro, nas pedras. Desde muito pequenina andava descalça pelo sítio dos pais. Desenvolveu tal robustez e rusticidade nos pés que seria capaz de arrancar toco a bicudaço. Cresceu educada na rígida disciplina eslava, trabalho duro na terra da família, educação na escola pública da colônia com aprendizado supervisionado pelos pais e irmãos, alimentação simples e sadia. E religião: Igreja Católica Ortodoxa, duas horas de missa dos domingos afora outras obrigações suplementares. Herdou o forte sotaque eslavo, embora jamais tivesse falado outra língua na vida a não ser o português.

O nome passou a ser motivo de chacota, desde a escola. Ninguém explicou o porquê da coincidência (ou não seria?) com uma antiga marca de produtos para cabelos. Talvez a mãe tenha achado o nome em algum almanaque, talvez o pai tenha ouvido alguma referência em suas andanças pelos botecos da região, mas enfim... Juvênia cresceu forte e sadia, mais forte que o necessário para uma moça caseira e prendada, casadoira, mas enfim...

Na escola só completou o curso primário, ou ensino fundamental, como queiram, depende da denominação da época. Não foi além por culpa dos pais. Do pai, especialmente, que achava que moça não precisa saber mais do que as obrigações da casa: lavar, coser, cozinhar... e cuidar do marido e dos filhos.

Aos dezenove anos Juvênia casou com Marézio, trinta e dois. Ambos virgens. Marézio nunca teve uma ocupação fixa, definida. Vivia dos rendimentos de uma pequena fortuna que herdou dos pais, rendimentos que gastava com parcimônia. Muita parcimônia.

O casório deu-se um bom tempo depois (e apesar) de um incidente ocorrido quando Marézio foi, pela primeira vez, visitar o sítio dos pais dela. Havia, debaixo de um frondoso abacateiro, um balanço constituído por um assento afixado em duas cordas paralelas na vertical, amarradas a um dos galhos da árvore, este quase na horizontal. Os dois namorados e os velhos estavam conversando, sentados nessa área do pomar, Marézio no balanço estagnado, quando o pai da moça pediu à filha mais nova, Jovana, uns treze anos na ocasião, que trouxesse suco de laranja. Cumprindo a ordem, Jovana foi à cozinha, preparou o suco e o trouxe numa grande bandeja aonde vinha, além da jarra com o líquido, uma certa quantidade de copos vazios. O primeiro a quem se ofereceu o suco foi exatamente Marézio que, envergonhado, não quis aceitar a distinção. Recusou o suco, mas Jovana era insistente. Afastando-se da futura cunhada, recuando com passos à ré, traseiro ainda assentado ao balanço, Marézio só queria livrar-se do embaraço. Jovana avançava em direção a Marézio teimando no oferecimento e o moço, recuando, recuando, até que a ponta dos pés não mais sustentou a situação: de supetão lá veio Marézio com tudo para cima da meninota, levantando-a no ar com as duas pernas, embolando-se ambos juntamente com bandeja, jarra e copos, numa espetacular cambalhota a dois que, se ensaiada, jamais se repetiria a contento. Marézio não pensou duas vezes. Erguendo-se de um salto, saiu às carreiras em direção à bicicleta com que tinha vindo e desapareceu como um corisco pelas sendas rurais até a segurança do seu quarto urbano. O namoro só foi retomado porque Juvênia procurou o infausto rapaz o qual, entretanto, só voltou ao sítio depois de terem estabelecido solenemente o noivado.


Marézio sempre foi distraído. Certa vez foi trabalhar à noite em seu ateliê – que servia ao mesmo tempo de escritório de projetos, biblioteca, depósito de peças usadas e oficina mecânica – quando decidiu preparar um café. Foi à pequena cozinha anexa e pôs água a ferver numa chaleira sobre o fogareiro a gás. Voltou ao trabalho em execução, mas por algum motivo decidiu interrompê-lo e retornou para casa. Só se lembrou do café às duas horas da madrugada quando os bombeiros o acordaram para verificar o estado de seu ateliê/escritório/biblioteca/oficina, àquela altura totalmente destruído pelo fogo. Graças aos bombeiros e a um vizinho que denunciou o fato assim que percebeu a fumaça, as demais construções do quarteirão puderam ser salvas. Todas as atividades de estudo, pesquisa e projetos de Marézio tiveram que ser temporariamente interrompidas.

Marézio gostava de andar de bicicleta. Adorava pedalar pelas redondezas do bairro, havia uma descida mais ou menos forte em que ele se largava na magrela, soltava as mãos do guidom, erguia o traseiro do selim e sentava-se atrás, no bagageiro, ou garupa, cabelos ao vento, pura sensação de liberdade. Mantinha sempre a sua bike em boas condições, caprichava na manutenção e na aparência. Certo domingo decidiu desmontar todo o veículo para uma limpeza e manutenção gerais. Sabem como é, uma graxinha, uma lustradinha. Tirou todos os acessórios e, após cuidar de cada um deles com capricho especial, foi remontando o veículo, peça por peça. Resolveu experimentar a danada ainda seminua, faltando a colocação dos paralamas, da proteção da corrente e do bagageiro/garupa. Tudo funcionando bem, a lubrificação melhorou o desempenho. As ruas do bairro foram vencidas com facilidade, lá veio a tal descida para a liberdade. Soltou as mãos, levantou o traseiro e, esquecido, sentou-se no “bagageiro”. Os populares que assistiram a cena enquanto aguardavam o ônibus no ponto comentaram entre si que nunca haviam visto uma freada naquelas condições e um tombo tão espetacular...

Além de supersticioso e distraído, Marézio ressentia-se de outros problemas. Um deles era a frustração. Por muito tempo esperou alguma manifestação, mas ninguém deu atenção à proposta que encaminhou para vários deputados federais e senadores propondo a apresentação de um projeto de lei tornando obrigatório o porte de guarda-chuva pelos pedestres que circulam em espaços públicos em dias de chuva ou com previsão de sua ocorrência. Essa medida, segundo a exposição de motivos encaminhada junto à proposta, teria o objetivo de proteger a saúde dos cidadãos – a exemplo do uso do cinto de segurança para quem utiliza o transporte motorizado – e sua desobediência ocasionaria a aplicação de multa, duplicada em caso de reincidência. Marézio, ele próprio, nunca dispensou o porte do guarda-chuva. Mesmo em dias de céu aberto e sol escaldante, o precioso instrumento sempre foi sua companhia constante. Também por graça divina, nunca esqueceu o guarda-chuva em nenhum lugar.

Outra frustração de Marézio residia no fato de que nunca recebera nenhuma resposta a um revolucionário projeto para desenvolvimento de um automóvel movido a água, que encaminhara à Caixa Econômica Federal. O pedido solicitava verbas para o desenvolvimento do projeto. Marézio achou uma estupidez o fato de terem perguntado o princípio de funcionamento do automóvel movido a água. Chegou mesmo a ter uma discussão com um engenheiro da Caixa depois que o projeto foi encaminhado para o órgão interno da instituição, para ser analisado. Marézio foi chamado e o engenheiro foi logo disparando:

- O senhor mandou um projeto pedindo verba para desenvolver um projeto de veículo movido a água, mas não detalhou o funcionamento do mesmo. Como pretende obter o financiamento?

- Eu pedi o financiamento para desenvolver o projeto, como o senhor bem observou. Então fica claro que o projeto ainda não foi desenvolvido. Como o projeto não foi desenvolvido, como é que eu vou saber como o carro vai funcionar?

- Mas assim não é possível aprovar o financiamento. As coisas ficam muito vagas, não há nenhuma certeza do sucesso...

- Essa certeza eu tenho! Só preciso de condições de desenvolver o projeto.

- Então o senhor já tem uma idéia, não é mesmo? Não pode por essa idéia no papel?

- Se eu puser a idéia no papel vou acabar elaborando o projeto. Como é uma coisa muito complexa, para elaborar o projeto é preciso tempo, dinheiro... preciso pagar um projetista, comprar material... Afinal, tudo o que preciso para o projeto está relacionado no projeto... quer dizer, no pedido de financiamento.

- Sim, estou vendo aqui. O senhor até juntou fotografias de uma oficina onde o carro seria produzido... não é uma oficina de primeiro mundo, não é mesmo?

- Nós não estamos no primeiro mundo, senhor. Escolhi a forma mais econômica de produzir o carro. Se tivesse optado por uma firma superequipada, com recursos de primeira linha, o custo de produção seria muito maior, não acha? Além disso, a oficina iria produzir apenas um protótipo. Mas esqueça, a oficina pegou fogo e preciso procurar outra...

- A oficina era sua? – O funcionário estava tentando contemporizar.

- Sim, era. Infelizmente. Ainda estão averiguando se foi sabotagem... de qualquer forma, eu não tenho seguro, mas o que há de se fazer? Paciência. Mais do que nunca, agora preciso da verba para desenvolver o projeto...

- Pois vamos analisar. Eu vou preparar um parecer... procurarei ser favorável, mas posso adiantar que vai ser meio difícil... sabe como é, esses projetos precisam ser muito objetivos...

- Sei o que vocês estão querendo. Saber o princípio de funcionamento, não é? Mas, como já disse, não posso adiantar nada, mesmo porque não sei...

- Muito bem, senhor Marézio. Aguarde notícias. Assim que a Caixa tiver uma decisão, ela será comunicada...

Marézio deixou a agência da Caixa Econômica Federal bastante abatido. Estava realmente pessimista. Se algum dia fora realista na vida, esse dia era esse mesmo. Comentando o caso com amigos, reconhecia que, se abrisse o jogo e revelasse o segredo do carro, teria grandes chances de obter o financiamento. Mas não era essa a sua idéia:

- Eles querem saber como vai funcionar o carro, é claro! Mas eu não sou burro. Não vou contar. Eles querem roubar o segredo para vender para algum grupo de tubarões que vai fabricar o automóvel. Saber eu sei, aliás sei muito bem, mas não vou contar de jeito nenhum. Se a Caixa não quiser soltar a grana, vou procurar financiamento em outro lugar. Alguém vai me ajudar, com certeza.

E assim Marézio foi tocando a vida, entre superstições e distrações, esperando por um financiamento que nunca saiu. Por seu lado, Juvênia concluiu que as coisas não iam bem no âmbito familiar quando constatou que passara a achar o primo Felício mais sensual que o próprio marido, embora faltassem a Felício dois dentes incisivos – toda a ala dianteira direita – e este andasse constantemente com o cabelo sujo e desgrenhado e com a barba por fazer e ainda, aos domingos, dedicasse manifesta e ostensiva preferência pelos botequins em detrimento da missa ortodoxa.

Em matéria de preferências, Juvênia enfrentava outra tragédia pessoal: era a dedicação especial que Marézio tinha pelos passeios noturnos de bicicleta e pelos games eletrônicos no computador. Quando não era uma coisa era outra, sempre em prejuízo dos exercícios sexuais pertinentes ao matrimônio. Assim é que, três meses após o casamento, Juvênia conseguia a separação de Marézio. Casaram virgens e se separaram idem.

A selvagem campônia acabou viúva uma semana depois da separação. Marézio morreu eletrocutado, vítima de um raio que atingiu a ponta do seu guarda-chuva quando perambulava pelas ruas debaixo de um forte aguaceiro. Assim, a humanidade ficou privada de mais uma maravilha da tecnologia moderna, eis que o segredo do automóvel movido a água foi inapelavelmente sepultado junto ao cadáver do infeliz Marézio.


Conto:
O advogado e a madrugada
O telefone toca às duas e meia da madrugada:
- Doutor Boris? Por favor, preciso da sua ajuda.
- O que é que foi? Quem é que está falando?
- Aqui é a Lurdes, sou esposa do João Mariano.
- Desculpe, mas não conheço a senhora nem o seu marido. Acho que a senhora errou o número do telefone.
- Não errei. Não é o Doutor Boris que está falando?
- Sim, aqui é o Boris. Quem lhe deu esse número de telefone?
- Foi um amigo seu, um cliente seu.
- Cliente? Faz muito tempo que não tenho clientes. Qual é o nome dele?
- Não sei bem o nome. Ele é amigo do João e disse que é seu amigo também.
- Afinal, o que é que a senhora quer?
- Eu preciso de um favor seu, Doutor Boris. É sobre o meu marido.
- O que é que aconteceu?
- Ele foi preso, Doutor. Ele estava num bar e estava armado, a polícia chegou e prendeu ele.
- E a senhora está procurando um advogado...
- É sim, Doutor Boris. O senhor pode me ajudar?
- A que horas ele foi preso?
- Agora há pouco. Acho que era uma hora da manhã, uma e meia...
- Escute uma coisa, dona... como é mesmo?
- Lurdes, meu nome é Lurdes.
- Pois bem, Dona Lurdes. Em primeiro lugar, faz vários anos que estou aposentado e não exerço mais a advocacia. Em segundo lugar, nunca fiz advocacia criminal e muito menos fui advogado de porta de cadeia...
- Mas, Doutor Boris, eu preciso muito...
- Dona Lurdes, eu poderia lhe fazer um favor, sim, se estivesse disposto a sair de casa a esta hora da madrugada. Se a senhora insistir muito eu talvez vá mesmo...
- Que bom, Doutor Boris...
- Sim, Dona Lurdes, eu poderia ir à delegacia e falar com o delegado ou com quem estivesse de plantão, e pediria que o seu marido ficasse trancafiado pelo menos por uma semana e, de preferência, que levasse uns cascudos todo dia... talvez assim conseguissem baixar o topete dele...
- Mas, Doutor...
- É sim, Dona Lurdes. Quem fica num bar até de madrugada, e armado ainda por cima, está é procurando confusão. Não está de boa fé, não...
- Mas o João...
- Já sei, na sua opinião, ele é um santinho. Pois fique sabendo que a senhora devia agradecer aos céus por ele ter sido preso. Caso contrário, a esta hora, a senhora poderia estar telefonando, não para um advogado, mas sim, para um agente funerário. Ou então, para um advogado mesmo, mas por causa de uma coisa muito mais grave. Então, quer que eu vá para a delegacia?
- Clic. tum, tum, tum...

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