COLABORADORES II



Conto
Hermes, o prestativo         
Mario Gentil Costa
Meu filho, que é corretor de imóveis, telefona:
- Pai, preciso dos teus documentos. Identidade, CPF, esses babados.
- Pra quê?
- Pra registrar um contrato.
- Onde tu estás?
- No cartório.
- Dá um pulo aqui. Tô te esperando.
- Então, desce. Está quase na hora de fechar.
- Tudo bem. Vem logo!
De repente, no elevador, lembrei que os documentos não estavam comigo; tinham ficado com um amigo, desses sabichões solícitos, que se oferecera para plastificá-los em sua máquina ‘de última geração’. E agora, o que fazer? Disquei seu celular; ninguém atendia. Liguei pro meu filho; também nada. De qualquer maneira, desci à portaria. Talvez no meio-tempo me ocorresse uma solução.
Ele chegou, esbaforido.
- Não tenho os babados... – declarei – Ficaram com o Hermes... pra plastificar.
- Essa, não!
- Agora, só amanhã.
- Amanhã é sábado! E segunda é feriado!
- Então, vamos atrás dele. Sei onde mora.
- É perto?
- Mais ou menos.
Pegamos o carro. O trânsito estava infernal; era hora do pique. O rapaz, impaciente a meu lado, roía as unhas. E protestou:
- Também, pai! Fazer plastificação logo hoje? Que idéia mais cretina!
- O quê? Plastificar?
- Plastificar na hora errada.
- Como é que eu ia adivinhar? Não ia sair mais de casa. E ele prometeu trazer tudo de noite...
- Tá bem. Tá bem. Mete o pé.
- Com esta balbúrdia?
- Deixa que eu dirijo. Tu és muito devagar pro meu gosto.
“Devagar” era sua maneira de me chamar de velho-gagá. E respondi:
- E tu és muito apressado pro meu gosto.
O movimento estava demais. Mesmo assim, fiz o que podia. Cortava um, cortava outro e ia avançando aos poucos. Ele só dava palpites:
- Passa essa velha barbeira!
Passei a “velha barbeira”, que só era velha pra ele; teria, no máximo, 45 anos. Pouco adiantou. O relógio corria mais que o carro. Finalmente, chegamos à casa do Hermes. Toquei a campainha. Sua senhora, que me conhecia, atendeu. “Ele tinha telefonado, avisando que estava trancado na ponte”.
- Mas o senhor pode entrar. Ele não deve demorar.
Que remédio! Entramos. Cafezinho. Os protocolos de costume... Uma TV, sempre ligada, mostrava a vista aérea dos carros parados sobre a ponte Colombo Salles.
Meu filho, agoniado, respondia, com a paciência possível, às perguntas interessadas da dona da casa, que queria saber tudo a seu respeito. O que estudava, se trabalhava, se tinha muitas namoradas...
- Ah, eu tenho tanta inveja dessa geração. No meu tempo, com aquela disciplina rígida, as moças...
- De fato... – observei, com urbanidade – As coisas mudaram...
- Mas se estão com tanta pressa, por que não dão uma espiada no escritório lá atrás?
- Ele já plastificou? – perguntou meu filho, erguendo-se da poltrona.
- Plastificou o quê? Não sei do que você está falando.
De novo afetando calma, ele explicou, e ela disse:
- Talvez esteja tudo lá. Ele andou mexendo naquela geringonça depois do almoço. Fiquem à vontade, mas não reparem a bagunça. O Hermesito...
Então era esse o apelido caseiro. Que bom saber... O escritório do “Hermesito”, que ficava no fundo do terreno, não era um escritório; era uma babel. Escarafunchávamos sobre o tampo atopetado da mesa principal, quando ela, espiando da porta, sugeriu:         - Se não estiver aí, procurem nas outras salas.
De fato, havia uma porta que dava para um imenso bricabraque. Até uma réplica do King Kong havia ali. Ela, então, explicou, já em retirada:
- É tudo interligado. Fiquem à vontade. Vou ver minha novela.
E desapareceu. Entramos na segunda sala; e na terceira; e na quarta. Em pouco tempo estávamos perdidos; aquilo era um vasto labirinto cheio de estantes atulhadas de velharias. E mal iluminado.
Meu filho procurava aqui; eu ali. O calor era insuportável porque não havia forro, e as janelas estavam fechadas. Eu já suava em bicas. Ele, mais ainda.
De repente, um raio, que devia ter caído muito perto, explodiu com um petardo, e começou a tempestade de verão; uma chuva-de-pedra desabava em guascaços sobre o telhado de zinco. O vento zunia pelas frestas. Parecia o fim do mundo; o juízo final. Um inesperado e gigantesco gato preto, quase uma pantera, saltou de uma prateleira e, com um guincho estridente, passou voando entre nós dois.
Eu acordei. E o Hermesito... nem sei quem é... 

* O autor é escritor amador, médico otorrinolangologista,
atualmente aposentado, ex-professor de
medicina da UFSC e mora em  Florianópolis.


Conto

A LOTERIA
       Mário Gentil Costa *
Filho de imigrantes espanhóis, Manuel Lorenzo Quezada era seu nome por extenso. Seu apelido, todavia, era bem brasileiro - Manecão - adquirido com pleno merecimento no ginásio pelo porte avantajado que lhe valera a posição de centro-avante rompedor do time da classe e de imbatível campeão de boxe. Essas, contudo, eram glórias do passado. Mais recentemente, o que ele fazia, com rara pertinácia, era perseguir a sorte. Semana após semana, obstinadamente, comprava o bilhete inteiro da Loteria Federal e, com olhar sonhador, ficava na expectativa de tirar-o-pé-da-lama. A mulher reclamava que em casa faltava isso, faltava aquilo, e ele nem se abalava. Estava convencido de que um dia, quando menos esperasse, estouraria-a-boca-do-balão. E lhe retrucava que, então, teria tudo que quisesse; casa nova, carro importado, vestidos de grife, prestígio social, etc...
- Há quantos anos tu dizes a mesma coisa, Maneca? Desde que as crianças eram pequenas. Além do mais, não faço questão de grifes ou carros importados.
- Tudo bem, mulher, mas tem paciência. Um dia eu ganho...
- Até lá, estaremos velhos.
- Calma, mulher, calma! Antes tarde que nunca. Enquanto isso, vou ajudando o santo...
- Que história é essa de ajudar santo...? - quis saber um compadre que, certa noite, os visitava.
Manecão, pacientemente, explicou-lhe que um conhecido seu, que ganhara o primeiro prêmio, tinha ido certa vez à igreja para pedir a proteção de São Benedito e não-dera-outro-bicho; bastara ajudar o santo...
- Sim, mas, como foi que ele ajudou o santo?
- Bem..., ele foi lá rezar para ganhar a loteria, e o santo disse:
“Pelo menos, meu caro, compre o bilhete...”
- Ah, entendi: ele não comprava e queria ganhar...
- E, quando passou a comprar, ganhou... Por isso, eu compro e vou ganhar... - arrematou Manecão.
- Mas você também foi lá conversar com o santo?
- Não achei necessário. Basta comprar, e ele adivinha.
- Isso é que é ter fé! - concluiu o compadre, que tratou de mudar de assunto.
Manecão era um remediado. Aposentado por tempo de serviço de um cargo estadual, não obstante morava em modesta casa própria no centro da cidade, tinha carro, embora de segunda mão, e a maioria dos confortos básicos da vida de um brasileiro médio, além de uma esposa dedicada que o ajudava costurando para fora, e dois filhos quase adultos e estudiosos. Por isso, missão cumprida e sem outras perspectivas, achava-se no pleno direito de se dar a essa mania que, se chegava a emagrecer de algum modo o orçamento doméstico, "era a garantia de dias melhores para o futuro da família..."
O tempo passou e, numa inesquecível quinta-feira, o vendedor de bilhetes - que era sempre o mesmo - bateu, afobado, à porta de sua casa.
- Seu marido está?
- Não, ele foi pescar. Por quê? - indagou a senhora.
O rapaz, olhando para os dois lados da rua e certificando-se de que ninguém o ouviria, aproximou-se da orelha da mulher e, protegendo a boca com a mão, como quem conta um segredo, declarou:
- Ele ganhou o primeiro prêmio...
- Não me diga!!!
- Quando ele volta? - emendou o bilheteiro, pensando na gorda gratificação, já prometida, que receberia do velho freguês.
- Ah, só amanhã.
- O bilhete está com ele?
- Claro. Ele não larga aquilo.
- Muito bem. Então, por favor, diga-lhe que me procure assim que voltar.
A senhora, perplexa com a perspectiva da extraordinária notícia que acabava de receber, foi logo assaltada por uma antiga preocupação: “O Maneca é cardíaco. Não sei como reagirá quando souber, ele que vive nessa esperança há tanto tempo. E, se chegar de repente, o que é que eu vou fazer? Tenho medo de assustá-lo...”
Não teve dúvida; telefonou para o cardiologista, velho amigo do marido, pondo-o a par da novidade e pedindo-lhe orientação.
- Não se preocupe, senhora. Eu me encarrego disso. Diga-lhe para vir ao meu consultório.
- Mas com que desculpa, doutor?
- Ah, diga-lhe que eu perguntei por ele; que faz tempo que não mede a pressão; que não faz um eletro; que sugeri que me procurasse.
- Está bem, doutor. Muito obrigada.
No dia seguinte chegou o Manecão, carregado de tainhas e completamente alheio aos fatos mais recentes. O bilhete estava enfiado no bolso interno do agasalho esportivo que usava nas pescarias, mas, acostumado à velha rotina de conferir e jogar fora, nem se lembrou do mesmo. Tomou seu banho, almoçou o peixe que a mulher lhe preparara, refestelou-se na poltrona, ligou a TV para assistir ao jornal do almoço e acabou pegando no sono.
Lá pelas quatro da tarde, cumprindo sua rotina de aposentado, costumava sair para bater papo com os amigos no Senadinho - o café mais popular da cidade - e devidamente engravatado, já se despedia da mulher, que sempre o acompanhava até a porta, quando esta, preocupada com o perigo de que fosse direto à casa lotérica, repetiu-lhe o recado do médico e insistiu, com o argumento de que o consultório ficava na metade do trajeto, para que, antes de qualquer outra coisa, fosse lá.
- Não, querida, primeiro eu vou conferir o bilhete. Depois vou ao médico.
Ela ficou desesperada. Não sabia o que dizer para obrigá-lo a inverter a ordem de suas prioridades. Quando o marido já acenava do portão da rua, ocorreu-lhe a mentirinha providencial:
- Mas Maneca, não vai dar tempo. Eu marquei hora para ti às quatro e meia.
- Ora essa, e por quê? Eu não estou sentindo nada.
De novo socorrida por uma inesperada presença de espírito, ela retrucou:
- Bem..., é que eu sabia que a essa hora tu estarias livre e, como o doutor se mostrou tão amigo da gente, me pareceu uma maneira de demonstrar meu interesse e nossa gratidão. Além disso, com a hora marcada, não vais ficar esperando à toa. E serás liberado mais depressa...
Manecão não foi capaz de reprimir uma expressão de perplexidade diante da força dos argumentos da mulher, mas, convencido de sua lógica irretocável, congratulou-se com sua inteligência, aproveitando a excelente oportunidade para pôr em prática, como fazia sempre que possível, sua boa política doméstica:
- Tu foste perfeita, minha querida. Tivesse todo mundo uma mulherzinha esperta como eu tenho. Excelente! Vou passar lá antes. Até logo!
Vendo o sorriso que se estampava na fisionomia da companheira - e que, erroneamente, interpretou como de satisfação, quando, na realidade, era de puro alívio - ele saiu despreocupado, assobiando uma modinha que, na ocasião, estava sendo muito tocada nas estações de rádio, e que, sem querer, guardara na memória.
Tão logo virou a esquina, ela correu ao telefone e ligou para o consultório, dando à secretária e ao próprio médico, as necessárias explicações para a falsa hora marcada. Tudo acertado, voltou à sua lida de dona de casa, concluindo, lá com seus pensares, que valera a pena casar-se com aquele homem bom e honesto, que lhe dera dois filhos excelentes e cujo coração merecia as mentirinhas pregadas.
Enquanto isso, Manecão, sem pressa, pois o prédio do cardiologista ficava a poucas quadras de sua casa, caminhava pelas ruas da cidade acenando alegremente para diversos conhecidos que cruzavam e, chegando ao consultório, foi logo encaminhado ao gabinete do cardiologista, que o recebeu com um caloroso aperto de mão:
- Então, como tem passado, meu caro?
- Muito bem, doutor.
- Quantas vezes já lhe pedi para não me chamar de doutor, Maneca? Afinal, somos amigos de infância. Estudamos juntos. Por favor, pare com isso!
- Ah, é a força do hábito. De mais a mais, um título é um título..., uma conquista que deve ser reverenciada...
Diga-se de passagem que Manecão, embora tolhido pelas circunstâncias da vida a um cargo humilde - pois perdera o pai muito cedo e tivera de abandonar os estudos no nível secundário para ajudar a mãe no sustento dos quatro irmãos mais moços - era um homem, talvez por isso mesmo, sensível à hierarquia social e, leitor inveterado, tinha sabido compensar a falta de um diploma universitário com a aquisição gradativa de uma cultura autodidática acima da média dos seus colegas de trabalho.
- Mas eu faço questão... - replicou o médico.
- Tá bem, tá bem. Vou procurar me lembrar na próxima vez. Mas, indo direto ao assunto para não abusar do seu tempo, que é precioso, cheguei da pescaria hoje e, logo que pus os pés dentro de casa, recebi seu recado. Aliás, muito obrigado por seu interesse. Realmente, estava na hora de visitá-lo. Afinal, não sou mais criança, e este meu coração traiçoeiro também não. Tanto é que já me pregou algumas peças.
- É verdade. E o fato de não estar sentindo nada não é garantia alguma. Já tive casos surpreendentes em pessoas até bem mais jovens que nós. Mas deixe-me auscultá-lo.
Demoradamente, enquanto pensava na melhor maneira de cumprir a missão que lhe transferira a esposa preocupada, o médico mediu-lhe a pressão, que estava controlada. Em seguida, com o estetoscópio, explorou-lhe em diversos pontos o imenso peito cabeludo. Convencido de que suas bulhas estavam regulares, deitou Manecão na maca e procedeu a um completo eletrocardiograma. Em seguida, submeteu-o a um teste de esforço. Nada que fosse ao menos presumível ameaçava seu velho amigo e cliente.
- Você está ótimo!
- Eu sabia. Vim porque me pediu. E também porque seria uma desconsideração. Afinal, não é qualquer um que goza do privilégio de ser chamado por um médico que nunca lhe cobrou um tostão, para uma simples rotina. E, ainda por cima, com hora marcada...
- Ora, deixe disso! Amigo é pra essas coisas. Afinal, não valem os gols que fizemos juntos no time do colégio? Na verdade, eu nem teria jeito de cobrar honorários de você...
- O que seria perfeitamente compreensível. Só eu sei o quanto lhe devo: o tratamento de dois enfartos, um sem número de consultas e exames, visitas em casa de madrugada. São coisas que não têm preço...
- Ah, esqueça! Mas..., mudando de assunto, você continua comprando a loteria toda semana?
- Claro! Já é um hábito, um vício...
- Há quanto tempo vem fazendo isso, Maneca?
- Eh, já perdi a conta... Uns vinte anos, no mínimo...
- E ainda não perdeu a esperança?
- Não. Um dia eu ganho. É uma convicção íntima... Sei que parece meio burra, mas é muito forte...
O cardiologista, impressionado, sentiu-se por um momento tentado a entrar em conjeturas de ordem psicológica e filosófica acerca daquela absurda certeza, mas, pensando melhor, concluiu que não valia a pena aprofundar a análise, já que os fatos, fosse por puro acaso, fosse por algum estranho tipo de premonição além de sua esfera de conhecimento, a confirmavam, e achou preferível prosseguir de maneira vaga e casual:
- E se ganhar..., o que pretende fazer com tanto dinheiro?
- Quer saber de uma coisa? Darei a metade a você... - afirmou Manecão num impulso genuíno, com a fisionomia séria e o ar mais compenetrado.
O médico, que era gordote e meio apoplético, daquele tipo sem pescoço, ao ouvir a inesperada declaração do amigo, retesou-se de repente, soltou um grito abafado, levou a mão ao peito, pendeu para a frente, bateu com a cabeça na quina da mesa e tombou sobre o tapete. De seus lábios escorria em golfadas uma viscosa baba cor-de-rosa. Seu peito arfava, a respiração estertorava em roncos cavernosos. Os olhos, estampando uma expressão de supremo assombro, estavam revirados, a boca retorcida num ricto esquisito.
Manecão, estarrecido, saltou da poltrona, abriu a porta que dava à sala de espera e gritou para a enfermeira:
- Venha depressa! Deu um negócio nele!
Quando esta chegou, trazendo consigo, tirado às pressas da gaveta de sua mesa, um frasquinho com minúsculos comprimidos brancos que, em vão, tentou enfiar-lhe sob a língua, era tarde demais; o doutor estava morto... 



* * * * *
Chatometria
        Mario Gentil Costa
Existem dois tipos de chato: um é inseto; outro é humano. O primeiro causa uma doença curável com inseticidas; o segundo é a própria doença. Ambulante. E incurável...
O primeiro é um artrópode da família dos pediculídeos, um ectoparasito hematófago com habitat preferencial na região pubiana do corpo humano e que, em casos severos, migra para outras áreas pilosas, como axilas, sobrancelhas, barba e bigode. Seu nome científico é “Phtirius pubis”, mas, popularmente, é chamado de “piolho-das-virilhas ou piolho-dos-soldados”. É primo-irmão do piolho da cabeça – o Pediculus capitis. Conheci-os, ambos, nos microscópios da cadeira de parasitologia do curso de medicina e posso afirmar que o parentesco se justifica na semelhança que guardam entre si.
Por que são chamados de “chatos”? Porque são inconvenientes; obrigam o portador a coçar-se o tempo todo, mesmo nos ambientes e momentos mais inadequados.
Daí ter surgido o conceito do chato-humano, origem da palavra ‘chatice’, doença de causa desconhecida. Que nunca terá cura; seu portador, por mais que se esforce, não escapa da sina de ser chato. Sempre. De forma inescapável. Sistemática. Absoluta.
Existem, acerca do chato, centenas de definições que não caberia citar aqui, sob pena de me tornar também um chato...
Na linguagem castiça, o chato é chamado de “Maçante, enfadonho ou cacete”. Na linha mais vulgar, estariam “o mala, o sarna, o cricri e o famoso ‘de galocha’”. Todos, entretanto, admitem uma infindável lista de subdivisões, como “o morrinha etílico (que carece de descrição), o conquistador (que vive a vangloriar-se de suas conquistas amorosas), o confidencial (que fala ao-pé-da-orelha, com a mão-em-concha), o tagarela (que fala, fala e nada diz), o pregador (que vive a impor sua fé), o espetador (que cutuca as costelas do interlocutor), o chafariz (que cospe e respinga ao falar), o prestativo (sempre pronto a ajudar, mesmo quando não é solicitado), o anedótico (de cujas piadas ninguém consegue rir), o chato-paciente (que só os médicos conhecem). E, por fim, o chato-de-largo-espectro, que não é nada disso, mas é chato.  
Caro(a) leitor(a), como você, convivo com alguns chatos. Faz parte dos deveres sociais. Mas tudo tem limites. Chega um ponto em que, por maior que seja a paciência, não dá pra agüentar. Urge, então, dar o fora, sob pena de explodir e criar constrangimentos.
Por sorte, sou dono de um chatômetro de precisão, sensível aos mais sutis indícios de alerta: a entonação da voz, a risadinha, a gesticulação, a solicitude com que tira uma caspa inexistente da minha lapela ou me ajeita o nó da gravata, a certeza com que calcula o diâmetro da minha cintura, o contorno geral, sei lá. Em poucos instantes, faço meu diagnóstico infalível e começo a preparar a escapada estratégica. Quando dá... Quando não dá, fazer o quê?         
O curioso é que o chato é um lutador infatigável, contumaz, crônico, persistente, ou seja, o chato é um forte. Tenho pra mim que ele sabe que é chato e vive fazendo uma força danada para deixar de sê-lo, para ser aceito entre os normais. Só não consegue porque desconhece a fórmula e quanto mais tenta, mais chato fica. E, sem querer, vai abrindo clareiras a seu redor. Em suma, ele é um poderoso antígeno; seu anátema, seu destino, seu fardo é criar anticorpos.
Numa análise genérica, diria que se mede o chato por seu grau de isolamento; pela constância com que é visto desacompanhado. O chato, em geral, vive à procura de uma vítima. Bobeou, ele ataca. E, por uma compulsão insuperável, começa logo a encher o saco.
Claro, não se pode generalizar, mas um exemplo desse espécime pode ser visto pelas ruas, correia na mão, a seguir os passos aleatórios e as paradas obrigatórias de um cachorrinho de estimação. Itinerário, que é bom, ele nunca tem; vai de poste-em-poste. E em nome do bom preparo físico ou da profilaxia das doenças circulatórias, ele caminha, caminha, caminha... horas-a-fio, sempre atento à perspectiva de grudar num conhecido que esteja desprevenido.  
Certa vez, de inopino, um chato me abordou num velório com missa-de-corpo-presente. Não tive como escapar. Em vez de louvar as virtudes do defunto – que as tinha em profusão – ele, após a saudação de praxe, enfileirou três perguntas descabidas, pronunciadas alto-e-bom-som. Começou assim:
- Mario, que prazer!
- Como tem passado? – respondi no tom mais cauteloso, aproveitando a gravidade da circunstância para não sorrir.
- Eu vou bem. Muito bem. Aliás, sempre vou muito bem. Mas, a propósito, o que tu achas da campanha do Corinthians?  
- Eu não ligo a mínima pro Corinthians – retruquei, peremptório, embora baixinho, como obrigava o protocolo.
- Ah, tudo bem. Então, qual é tua opinião sobre o assassinato do Kennedy? Achas que foi o Lee Oswald mesmo?
- Mas isso aconteceu há mais de 40 anos...
- E daí? Até hoje persistem dúvidas...
- Ora, por favor...
O saco estava quase cheio, e ele voltou à carga:
- Tudo bem, tudo bem. Então me responde: quem vai ser eleito?
Já notaram que quase todo chato é um perguntador? Acho que sei por quê: ele raramente tem respostas...
Pois bem. O saco encheu, e eu o convidei a sair da igreja. Lá fora, o saco explodiu:
- Escute aqui, Fulano, você não acha que o momento não recomenda este tipo de conversa? Estamos num velório, cara, e não num botequim.
- Desculpa, não fiz por mal.
- Claro. Agora, se você me dá licença, vou voltar lá pra dentro.
- Claro, claro. Fica à vontade.
Foi assim, com esse destempero, que me livrei desse Pthrius pubis. Hoje ele não me aborda mais. Mesmo assim, por medida de segurança, faço que não o vejo e passo ao largo...
 * * * * *
Eleições Oabeanas
Carlos Adauto Vieira

O termo OABEANA/O foi criado pelo Conselheiro Federal  Carlos Alberto Silveira Lenzi, lá por 1985, quando, junto com o Sadi Lima, representávamos a Seccional Catarinense. E foi referendado pelo saudoso Colega e Ex-Ministro da Justiça , Dr.  SEABRA FAGUNDES, passando significar relação com a Ordem dos Advogados.
Se os gorilas de 64, houvessem feito uma correta avaliação da ORDEM, ela teria sido, simplesmente, fechada, sem reação. Ela era governada por 1% ( Um por cento) dos advogados inscritos, militantes ou não. E sua maior atividade era cobrar anuidades e multas por não comparecimento às eleições da corporação.
A prisão de notáveis advogados, que reagiram ao golpe e se puseram na defesa de outros que haviam sido encarcerados, além de líderes sindicais, jornalistas, escritores, músicos, artistas plásticos, levou-a assumir  a luta pelos direitos humanos e democráticos, chegando à decisão de retorno à Democracia e à Constituição.
 A luta contra a ditadura nos ensinou a importância Dela no contexto nacional.
A Carta de 88 deu status à Advocacia, tornando-a prerrogativa constitucional dos inscritos na OAB, ainda, mal aceita, igualando –a à Magistratura e ao Ministério Público.
E, com base no artigo 133 da Carta, reformou seu estatuto de 1963, em 1994, buscando torná-lo mais abrangente e mais democrático.
Falhou em certos pontos. Sendo a falha mais clamorosa a das eleições de três em três anos, obrigatória, pena de multa.
O processo eleitoral excluiu os candidatos singulares, pretendentes às diretorias e aos conselhos, fora dos, apelidados, chapões. A diretoria, candidata nestes chapões, ainda, elege os conselheiros como seu apêndice. Na prática, seu acessório....Assim como os tribunais de ética.
Não há eleição de uma diretoria e candidatos  ao Conselho de outra. Nem os candidatos podem ser avulsos, seja para uma, seja para outro.
Diretoria e conselho se elegem juntos e, também, com os três candidatos ao Conselho
 Federal! Não sobra oposição. Tudo é situação ! Mesmo que os opositores tenham mais votos, só vão à diretoria e aos conselhos, se estiverem integrando uma só e mesma chapa. Ou, chapão ! É, s.m.j. uma  eleição antidemocrática.
Certo existirem as chapas, até com número mínimo de candidatos, mas disputando, pessoalmente, as vagas, a fim de não suceder o que sucede agora : um com cinco mil votos perde para um com dois, eleito pelo chapão.
Que conselho pode resultar desta osmose ? Um submisso, conivente. Que tribunal de ética pode ser livre, corajoso, bom julgador,  se não foi eleito, mas nomeado ?

Embora haja os que não se submetem, não aceitam as condenações ordenadas, mas aquela de acordo com a sua consciência e a sua cultura jurídica. Assim, como nos conselhos. São raridades.
Solução ?
As mudanças são simples e podem ser as abaixo:
ARTIGO 64 – Consideram-se eleitos os candidatos integrantes das chapas registradas que obtiverem, individualmente, a maioria dos votos válidos.
§ 1º - idem à Diretoria da Caixa de Assistência e ao   Tribunal de Ética e Disciplina.
§ 2º - A chapa para a Subseção deve ser composta com os candidatos  à Diretoria, à Caixa de Assistência, ao Conselho Municipal – onde houver – e  ao   TED  Subseccional.
Estatuto. Lei 8906/94 .
Estas são as mudanças mais urgentes. Já para as próximas eleições, no ano vindouro.Pena de argüição de inconstitucionalidade do processo eleitoral em juízo.

A autor é jornalista, escritor e advogado
OABSC 252-Ex-Conselheiro Federal

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A sacralidade do vinho
Edson Nelson Ubaldo

A Quaresma, no mundo cristão, é o período sombrio que antecede a Paixão de Jesus, mas também o tempo de preparação para a ressurreição do Redentor no Domingo de Páscoa, com os sinos a bimbalhar no anúncio de uma nova era, marcada pelo perdão, pela alegria e pela paz. O vinho, ao lado do peixe e do pão, é parte indissociável dos momentos mais importantes da passagem de Cristo pela Terra. Os peixes se multiplicaram quando seus seguidores sentiram fome; o pão fez parte de todas as suas refeições, mas o vinho desempenhou um papel destacado.
Nas bodas de Caná, em que o anfitrião calculou mal a quantidade e os convidados reclamaram, Cristo salvou a festa transformando a água em vinho. Mas já naquele tempo, à semelhança dos dias atuais, mesmo comendo e bebendo de graça, os convivas nunca estavam satisfeitos. Não deixaram por menos: “o que é isso, Caná, o costume é servir primeiro o melhor vinho, mas tu o guardaste para o fim, quando o pessoal já está de cara cheia?”
Na Última Ceia Cristo reparte o pão com seus discípulos, como símbolo do seu próprio corpo distribuído a toda a humanidade, para que esta se impregne de novas forças e novas ideias de solidariedade, fraternidade e tolerância. Em seguida oferece o vinho, que sem dúvida era tinto: “tomai e bebei, pois este é o meu sangue.” Pede que continuem a compartir as duas espécies: “fazei isto em memória de mim”. Por isso a Igreja Católica perpetua o gesto na cerimônia da missa - a romana somente com o pão em forma de hóstia e a ortodoxa com o pão e o vinho, mais fiel, portanto, à origem do ritual.
Ao eleger o vinho como sendo o seu próprio sangue, Cristo consagrou-o como o símbolo máximo da vida, da continuidade de seus ensinamentos e do início de uma nova era para a humanidade. O sangue, por certo, é o grande elemento da vida, que circula por todo o corpo, oxigenando e mantendo vivas as células. Uma grande honra, pois, para o suco fermentado da uva! A ciência botânica, coerente com esse princípio, classifica a videira como Vitis, ou seja, vida. A pobre maçã, contudo, por força das travessuras de uma moçoila assanhada chamada Eva – que vivia na Vila Paraíso com um rapazote meio ingênuo, de nome Adão - foi injustiçada com a denominação de Mallus, cuja tradução é mal.
Cristo não foi o primeiro a dar ao vinho um caráter sacramental. A importância de sua iniciativa está no fato de que, há mais de dois mil anos, a consagração iniciada na Última Ceia se repete milhares de vezes todos os dias, durante as missas celebradas ao redor da Terra. Vale a pena imaginar quantos litros de vinho são consumidos por ano nesse importante ritual eclesiástico! Com efeito, o uso do vinho como oferenda aos deuses, conforme comprovam as descobertas arqueológicas, existiu entre sumérios, babilônios, hititas (persas), egípcios, gregos e romanos. Estes dois últimos povos criaram deuses e festas especiais em homenagem ao vinho. Os gregos veneravam Dyonisos e celebravam festas próprias, como as dionisíacas e as eleusinas. Os romanos adoravam Baco e divertiam-se nas bacanais, que na época não tinham o sentido pejorativo de hoje. Tais celebrações estavam ligadas aos ritos da fertilidade e quando os convivas passavam da conta aconteciam previsíveis excessos de liberdade nos costumes. O cristianismo, a partir de uma nova ótica moral, execrou as bacanais e impôs sua proibição quando o Imperador Constantino, no ano 312, adotou a nova crença como religião oficial do estado. Por isso as bacanais viraram sinônimo de orgias, até porque, na realidade, de um ponto em diante deviam ser exatamente isso.
Mais tarde outras crenças e sociedades filosóficas introduziram o vinho em seus rituais. O Candomblé nacional recomenda que os "filhos" de Xangô ofereçam semanalmente uma taça de vinho branco a esse orixá, enquanto a Umbanda – versão sincrética mais popular - prefere o “marafo” (cachaça). A Maçonaria, no final do ritual de iniciação ao Grau 14 do Rito Escocês Antigo e Aceito, utiliza uma taça de vinho tinto da qual todos os participantes tomam um gole, significando união e fraternidade. A taça é quebrada ao término da sessão, para que nenhum profano dela possa se servir. Tal gesto simboliza a renovação do compromisso de silêncio e respeito mútuo dos iniciados.
Enfim, qual o motivo que emprestou ao vinho, ao lado do pão, essa aura de sacralidade? A resposta é simples: ambos foram os primeiros produtos alimentícios elaborados pelo homem, antes somente caçador e coletor. O cultivo da vinha e do trigo marca o início do sedentarismo. O homem deixa de ser nômade e constrói as primeiras aldeias. Como a sobrevivência dependia do cultivo e este se sujeitava aos caprichos do clima, era preciso fazer oferendas aos deuses para que estes permitissem boas colheitas. Nada mais natural, portanto, do que oferecer-lhes os próprios produtos almejados. Por outro lado, o pão é sólido e representa o corpo. O vinho, por ser líquido e vermelho,assemelha-se ao sangue. Ou seja, os dois elementos são símbolos perfeitos da própria vida.
Cristo, mais que todos, soube sintetizar e eternizar essa maravilhosa simbologia. Por isso, quando se celebra a sua Ressurreição, nada mais adequado do que mastigar um pedaço de pão e sorver uma taça de vinho, ao mesmo tempo em que cada um de nós se permita alguns momentos de reflexão e verifique se de fato tem seguido os ensinamentos de paz, fraternidade, solidariedade, compreensão, perdão, tolerância e caridade para com os próprios semelhantes, conforme traçados pelo Homem de Nazaré.

O autor é desembargador aposentado



O COLISEU
Mario Gentil Costa

Um guia turístico tanto pode ser uma pessoa como um papel impresso.
Se impresso, será certamente um folheto explicativo com explicações sobre a história, a geografia, a economia, a cultura e os costumes de um determinado povo ou região, e que dê respostas imediatas ao turista, ensinando-lhe aonde ir e o que buscar.
Se pessoa, deve estar, em matéria de conhecimento, acima do segundo caso, isto é, não pode parecer um mero folheto ambulante, como alguns que existem aqui em Floripa.
Vítima - que às vezes não consigo deixar de ser - do nosso atávico complexo de inferioridade tupiniquim, qual não foi minha surpresa quando, num papo variado e agradável com um prezado amigo e colega, que, na ocasião, recém-vinha de uma excursão pela Europa, onde, entre muitas atrações, visitara o Coliseu, foi-me posta esta questão:
- Mario, tu sabias que o Coliseu nunca foi palco de matanças?
- Quem te disse isso?
- Meu guia turístico...
- Gente ou livro?
- Não entendi - confessou, indeciso.
- Guia turístico gente ou guia turístico livro? - corrigi.
- Ah, sim. Um homem. Disse que tudo não passa de balela; que o Coliseu era apenas um grande circo para divertir o povão.
- Pois ele errou. Ali foram sacrificados não apenas cristãos e criminosos, mas também judeus...
- Tás brincando! Quem te disse?
- Li. Em livros que esse guia nunca leu...
- Então, vamos saber se tu leste mesmo: qual é o verdadeiro nome do Coliseu? O original...?
- Anfiteatro Flaviano – respondi e emendei: - Agora, deixa-me dizer algo mais para justificar minha afirmação anterior: o Coliseu, erigido por Tito no início da Era Cristã, foi construído com mão-de-obra escrava. Esse “imperador” trouxe de Jerusalém, que acabara de conquistar e devastar por volta do ano 70 d.C., 12.000 escravos judeus. Foram eles que construíram o Coliseu. E, no dia da inauguração, cerca de 10.000 desses trabalhadores foram, diante de toda a corte romana e da plebe que lotava a arena, atirados aos leões para “abrilhantar as festividades”. Depois, seus corpos dilacerados foram arrastados por uma abertura no fundo da arena, chamada “porta da morte”. Por causa disso, até hoje, em atitude de protesto contra essa chacina histórica, muitos judeus eruditos, quando fazem turismo em Roma, não visitam o Coliseu. E cristãos também foram mortos ali, sim, porque eram vistos como subversivos que ameaçavam a estabilidade do regime, até que o Imperador Constantino, convertido ao Cristianismo após um delírio esquizofrênico em que avistou uma cruz no céu, suspendeu as execuções no século IV. Daí em diante, eram sacrificados apenas os escravos rebeldes, os criminosos e os condenados da justiça.
- E por que o guia teria omitido tudo isso? - indagou o amigo, perplexo.
- Porque ignorava. Ou, talvez, tivesse sido orientado nesse sentido por forças ocultas, com o objetivo de diminuir o mérito desses mártires. Afinal, judeus sempre tiveram seus inimigos e detratores...
Afastando de cima dos olhos seu vasto e rebelde topete – que faz inveja a muito careca que eu conheço – meu amigo, com o olhar perdido no horizonte, relembrou:
- Uma outra coisa que ele disse é que ninguém sabe por que o povo chama aquilo de Coliseu.
- Outro detalhe que ele também deveria conhecer. “Coliseu” vem do latim; quer dizer “colossal”. O termo original era “colosseus”. O tempo encarregou-se de transformá-lo. Os italianos dizem “coliseo”.
De fato, nem eu nem o amigo tínhamos obrigação de saber desses detalhes. Mas o guia turístico, que não era tupiniquim, esse tinha!...

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