Conto
Conto
Hermes, o prestativo
Mario Gentil Costa
Meu filho, que é corretor de
imóveis, telefona:
- Pai, preciso dos teus
documentos. Identidade, CPF, esses babados.
- Pra quê?
- Pra registrar um contrato.
- Onde tu estás?
- No cartório.
- Dá um pulo aqui. Tô te
esperando.
- Então, desce. Está quase na
hora de fechar.
- Tudo bem. Vem logo!
De repente, no elevador, lembrei
que os documentos não estavam comigo; tinham ficado com um amigo, desses
sabichões solícitos, que se oferecera para plastificá-los em sua máquina ‘de
última geração’. E agora, o que fazer? Disquei seu celular; ninguém atendia.
Liguei pro meu filho; também nada. De qualquer maneira, desci à portaria.
Talvez no meio-tempo me ocorresse uma solução.
Ele chegou, esbaforido.
- Não tenho os babados... –
declarei – Ficaram com o Hermes... pra plastificar.
- Essa, não!
- Agora, só amanhã.
- Amanhã é sábado! E segunda é
feriado!
- Então, vamos atrás dele. Sei
onde mora.
- É perto?
- Mais ou menos.
Pegamos o carro. O trânsito estava
infernal; era hora do pique. O rapaz, impaciente a meu lado, roía as unhas. E
protestou:
- Também, pai! Fazer
plastificação logo hoje? Que idéia mais cretina!
- O quê? Plastificar?
- Plastificar na hora errada.
- Como é que eu ia adivinhar? Não
ia sair mais de casa. E ele prometeu trazer tudo de noite...
- Tá bem. Tá bem. Mete o pé.
- Com esta balbúrdia?
- Deixa que eu dirijo. Tu és
muito devagar pro meu gosto.
“Devagar” era sua maneira de me
chamar de velho-gagá. E respondi:
- E tu és muito apressado pro meu
gosto.
O movimento estava demais. Mesmo
assim, fiz o que podia. Cortava um, cortava outro e ia avançando aos poucos.
Ele só dava palpites:
- Passa essa velha barbeira!
Passei a “velha barbeira”, que só
era velha pra ele; teria, no máximo, 45 anos. Pouco adiantou. O relógio corria
mais que o carro. Finalmente, chegamos à casa do Hermes. Toquei a campainha.
Sua senhora, que me conhecia, atendeu. “Ele tinha telefonado, avisando que
estava trancado na ponte”.
- Mas o senhor pode entrar. Ele não
deve demorar.
Que remédio! Entramos. Cafezinho.
Os protocolos de costume... Uma TV, sempre ligada, mostrava a vista aérea dos
carros parados sobre a ponte Colombo Salles.
Meu filho, agoniado, respondia,
com a paciência possível, às perguntas interessadas da dona da casa, que queria
saber tudo a seu respeito. O que estudava, se trabalhava, se tinha muitas
namoradas...
- Ah, eu tenho tanta inveja dessa
geração. No meu tempo, com aquela disciplina rígida, as moças...
- De fato... – observei, com
urbanidade – As coisas mudaram...
- Mas se estão com tanta pressa,
por que não dão uma espiada no escritório lá atrás?
- Ele já plastificou? – perguntou
meu filho, erguendo-se da poltrona.
- Plastificou o quê? Não sei do
que você está falando.
De novo afetando calma, ele
explicou, e ela disse:
- Talvez esteja tudo lá. Ele
andou mexendo naquela geringonça depois do almoço. Fiquem à vontade, mas não
reparem a bagunça. O Hermesito...
Então era esse o apelido caseiro.
Que bom saber... O escritório do “Hermesito”, que ficava no fundo do terreno,
não era um escritório; era uma babel. Escarafunchávamos sobre o tampo atopetado
da mesa principal, quando ela, espiando da porta,
sugeriu: - Se não estiver aí,
procurem nas outras salas.
De fato, havia uma porta que dava
para um imenso bricabraque. Até uma réplica do King Kong havia ali. Ela, então,
explicou, já em retirada:
- É tudo interligado. Fiquem à
vontade. Vou ver minha novela.
E desapareceu. Entramos na
segunda sala; e na terceira; e na quarta. Em pouco tempo estávamos perdidos;
aquilo era um vasto labirinto cheio de estantes atulhadas de velharias. E mal
iluminado.
Meu filho procurava aqui; eu ali.
O calor era insuportável porque não havia forro, e as janelas estavam fechadas.
Eu já suava em bicas. Ele, mais ainda.
De repente, um raio, que devia
ter caído muito perto, explodiu com um petardo, e começou a tempestade de
verão; uma chuva-de-pedra desabava em guascaços sobre o telhado de zinco. O
vento zunia pelas frestas. Parecia o fim do mundo; o juízo final. Um inesperado
e gigantesco gato preto, quase uma pantera, saltou de uma prateleira e, com um
guincho estridente, passou voando entre nós dois.
Eu acordei. E o Hermesito... nem
sei quem é...
* O autor é escritor amador, médico otorrinolangologista,
atualmente aposentado, ex-professor de
medicina da UFSC e mora em Florianópolis.
Conto
A LOTERIA
Mário Gentil Costa *
Filho de
imigrantes espanhóis, Manuel Lorenzo Quezada era seu nome por extenso. Seu
apelido, todavia, era bem brasileiro - Manecão - adquirido com pleno
merecimento no ginásio pelo porte avantajado que lhe valera a posição de
centro-avante rompedor do time da classe e de imbatível campeão de boxe. Essas,
contudo, eram glórias do passado. Mais recentemente, o que ele fazia, com rara
pertinácia, era perseguir a sorte. Semana após semana, obstinadamente, comprava
o bilhete inteiro da Loteria Federal e, com olhar sonhador, ficava na
expectativa de tirar-o-pé-da-lama. A mulher reclamava que em casa
faltava isso, faltava aquilo, e ele nem se abalava. Estava convencido de que um
dia, quando menos esperasse, estouraria-a-boca-do-balão. E lhe retrucava
que, então, teria tudo que quisesse; casa nova, carro importado, vestidos de
grife, prestígio social, etc...
- Há
quantos anos tu dizes a mesma coisa, Maneca? Desde que as crianças eram
pequenas. Além do mais, não faço questão de grifes ou carros importados.
- Tudo
bem, mulher, mas tem paciência. Um dia eu ganho...
- Até lá,
estaremos velhos.
- Calma,
mulher, calma! Antes tarde que nunca. Enquanto isso, vou ajudando o santo...
- Que
história é essa de ajudar santo...? - quis saber um compadre que, certa
noite, os visitava.
Manecão,
pacientemente, explicou-lhe que um conhecido seu, que ganhara o primeiro prêmio,
tinha ido certa vez à igreja para pedir a proteção de São Benedito e não-dera-outro-bicho;
bastara ajudar o santo...
- Sim,
mas, como foi que ele ajudou o santo?
- Bem...,
ele foi lá rezar para ganhar a loteria, e o santo disse:
“Pelo menos,
meu caro, compre o bilhete...”
- Ah,
entendi: ele não comprava e queria ganhar...
- E,
quando passou a comprar, ganhou... Por isso, eu compro e vou ganhar... -
arrematou Manecão.
- Mas
você também foi lá conversar com o santo?
- Não
achei necessário. Basta comprar, e ele adivinha.
- Isso é
que é ter fé! - concluiu o compadre, que tratou de mudar de assunto.
Manecão
era um remediado. Aposentado por tempo de serviço de um cargo estadual, não
obstante morava em modesta casa própria no centro da cidade, tinha carro,
embora de segunda mão, e a maioria dos confortos básicos da vida de um
brasileiro médio, além de uma esposa dedicada que o ajudava costurando para
fora, e dois filhos quase adultos e estudiosos. Por isso, missão cumprida e sem
outras perspectivas, achava-se no pleno direito de se dar a essa mania que,
se chegava a emagrecer de algum modo o orçamento doméstico, "era a
garantia de dias melhores para o futuro da família..."
O tempo
passou e, numa inesquecível quinta-feira, o vendedor de bilhetes - que era
sempre o mesmo - bateu, afobado, à porta de sua casa.
- Seu
marido está?
- Não,
ele foi pescar. Por quê? - indagou a senhora.
O rapaz,
olhando para os dois lados da rua e certificando-se de que ninguém o ouviria,
aproximou-se da orelha da mulher e, protegendo a boca com a mão, como quem
conta um segredo, declarou:
- Ele
ganhou o primeiro prêmio...
- Não me
diga!!!
- Quando
ele volta? - emendou o bilheteiro, pensando na gorda gratificação, já
prometida, que receberia do velho freguês.
- Ah, só
amanhã.
- O
bilhete está com ele?
- Claro.
Ele não larga aquilo.
- Muito
bem. Então, por favor, diga-lhe que me procure assim que voltar.
A
senhora, perplexa com a perspectiva da extraordinária notícia que acabava de
receber, foi logo assaltada por uma antiga preocupação: “O Maneca é
cardíaco. Não sei como reagirá quando souber, ele que vive nessa esperança há
tanto tempo. E, se chegar de repente, o que é que eu vou fazer? Tenho medo de
assustá-lo...”
Não teve
dúvida; telefonou para o cardiologista, velho amigo do marido, pondo-o a par da
novidade e pedindo-lhe orientação.
- Não se
preocupe, senhora. Eu me encarrego disso. Diga-lhe para vir ao meu consultório.
- Mas com
que desculpa, doutor?
- Ah,
diga-lhe que eu perguntei por ele; que faz tempo que não mede a pressão; que
não faz um eletro; que sugeri que me procurasse.
- Está
bem, doutor. Muito obrigada.
No dia
seguinte chegou o Manecão, carregado de tainhas e completamente alheio aos
fatos mais recentes. O bilhete estava enfiado no bolso interno do agasalho
esportivo que usava nas pescarias, mas, acostumado à velha rotina de conferir e
jogar fora, nem se lembrou do mesmo. Tomou seu banho, almoçou o peixe que a
mulher lhe preparara, refestelou-se na poltrona, ligou a TV para assistir ao
jornal do almoço e acabou pegando no sono.
Lá pelas
quatro da tarde, cumprindo sua rotina de aposentado, costumava sair para bater
papo com os amigos no Senadinho - o café mais popular da cidade - e devidamente
engravatado, já se despedia da mulher, que sempre o acompanhava até a porta,
quando esta, preocupada com o perigo de que fosse direto à casa lotérica,
repetiu-lhe o recado do médico e insistiu, com o argumento de que o consultório
ficava na metade do trajeto, para que, antes de qualquer outra coisa, fosse lá.
- Não,
querida, primeiro eu vou conferir o bilhete. Depois vou ao médico.
Ela ficou
desesperada. Não sabia o que dizer para obrigá-lo a inverter a ordem de suas
prioridades. Quando o marido já acenava do portão da rua, ocorreu-lhe a
mentirinha providencial:
- Mas
Maneca, não vai dar tempo. Eu marquei hora para ti às quatro e meia.
- Ora
essa, e por quê? Eu não estou sentindo nada.
De novo
socorrida por uma inesperada presença de espírito, ela retrucou:
- Bem...,
é que eu sabia que a essa hora tu estarias livre e, como o doutor se mostrou
tão amigo da gente, me pareceu uma maneira de demonstrar meu interesse e nossa
gratidão. Além disso, com a hora marcada, não vais ficar esperando à toa. E
serás liberado mais depressa...
Manecão
não foi capaz de reprimir uma expressão de perplexidade diante da força dos
argumentos da mulher, mas, convencido de sua lógica irretocável, congratulou-se
com sua inteligência, aproveitando a excelente oportunidade para pôr em
prática, como fazia sempre que possível, sua boa política doméstica:
- Tu
foste perfeita, minha querida. Tivesse todo mundo uma mulherzinha esperta como
eu tenho. Excelente! Vou passar lá antes. Até logo!
Vendo o
sorriso que se estampava na fisionomia da companheira - e que, erroneamente,
interpretou como de satisfação, quando, na realidade, era de puro alívio - ele
saiu despreocupado, assobiando uma modinha que, na ocasião, estava sendo muito
tocada nas estações de rádio, e que, sem querer, guardara na memória.
Tão logo
virou a esquina, ela correu ao telefone e ligou para o consultório, dando à
secretária e ao próprio médico, as necessárias explicações para a falsa hora
marcada. Tudo acertado, voltou à sua lida de dona de casa, concluindo, lá com
seus pensares, que valera a pena casar-se com aquele homem bom e honesto, que
lhe dera dois filhos excelentes e cujo coração merecia as mentirinhas pregadas.
Enquanto
isso, Manecão, sem pressa, pois o prédio do cardiologista ficava a poucas
quadras de sua casa, caminhava pelas ruas da cidade acenando alegremente para
diversos conhecidos que cruzavam e, chegando ao consultório, foi logo
encaminhado ao gabinete do cardiologista, que o recebeu com um caloroso aperto
de mão:
- Então,
como tem passado, meu caro?
- Muito
bem, doutor.
- Quantas
vezes já lhe pedi para não me chamar de doutor, Maneca? Afinal, somos amigos de
infância. Estudamos juntos. Por favor, pare com isso!
- Ah, é a
força do hábito. De mais a mais, um título é um título..., uma conquista que
deve ser reverenciada...
Diga-se
de passagem que Manecão, embora tolhido pelas circunstâncias da vida a um cargo
humilde - pois perdera o pai muito cedo e tivera de abandonar os estudos no
nível secundário para ajudar a mãe no sustento dos quatro irmãos mais moços -
era um homem, talvez por isso mesmo, sensível à hierarquia social e, leitor
inveterado, tinha sabido compensar a falta de um diploma universitário com a
aquisição gradativa de uma cultura autodidática acima da média dos seus colegas
de trabalho.
- Mas eu
faço questão... - replicou o médico.
- Tá bem,
tá bem. Vou procurar me lembrar na próxima vez. Mas, indo direto ao assunto
para não abusar do seu tempo, que é precioso, cheguei da pescaria hoje e, logo
que pus os pés dentro de casa, recebi seu recado. Aliás, muito obrigado por seu
interesse. Realmente, estava na hora de visitá-lo. Afinal, não sou mais
criança, e este meu coração traiçoeiro também não. Tanto é que já me pregou
algumas peças.
- É
verdade. E o fato de não estar sentindo nada não é garantia alguma. Já tive
casos surpreendentes em pessoas até bem mais jovens que nós. Mas deixe-me
auscultá-lo.
Demoradamente,
enquanto pensava na melhor maneira de cumprir a missão que lhe transferira a
esposa preocupada, o médico mediu-lhe a pressão, que estava controlada. Em
seguida, com o estetoscópio, explorou-lhe em diversos pontos o imenso peito
cabeludo. Convencido de que suas bulhas estavam regulares, deitou Manecão na
maca e procedeu a um completo eletrocardiograma. Em seguida, submeteu-o a um
teste de esforço. Nada que fosse ao menos presumível ameaçava seu velho amigo e
cliente.
- Você
está ótimo!
- Eu
sabia. Vim porque me pediu. E também porque seria uma desconsideração. Afinal,
não é qualquer um que goza do privilégio de ser chamado por um médico que nunca
lhe cobrou um tostão, para uma simples rotina. E, ainda por cima, com hora
marcada...
- Ora,
deixe disso! Amigo é pra essas coisas. Afinal, não valem os gols que fizemos
juntos no time do colégio? Na verdade, eu nem teria jeito de cobrar honorários
de você...
- O que
seria perfeitamente compreensível. Só eu sei o quanto lhe devo: o tratamento de
dois enfartos, um sem número de consultas e exames, visitas em casa de
madrugada. São coisas que não têm preço...
- Ah,
esqueça! Mas..., mudando de assunto, você continua comprando a loteria toda
semana?
- Claro!
Já é um hábito, um vício...
- Há
quanto tempo vem fazendo isso, Maneca?
- Eh, já
perdi a conta... Uns vinte anos, no mínimo...
- E ainda
não perdeu a esperança?
- Não. Um
dia eu ganho. É uma convicção íntima... Sei que parece meio burra, mas é muito
forte...
O
cardiologista, impressionado, sentiu-se por um momento tentado a entrar em
conjeturas de ordem psicológica e filosófica acerca daquela absurda certeza,
mas, pensando melhor, concluiu que não valia a pena aprofundar a análise, já
que os fatos, fosse por puro acaso, fosse por algum estranho tipo de premonição
além de sua esfera de conhecimento, a confirmavam, e achou preferível
prosseguir de maneira vaga e casual:
- E se
ganhar..., o que pretende fazer com tanto dinheiro?
- Quer
saber de uma coisa? Darei a metade a você... - afirmou Manecão num impulso
genuíno, com a fisionomia séria e o ar mais compenetrado.
O médico,
que era gordote e meio apoplético, daquele tipo sem pescoço, ao ouvir a
inesperada declaração do amigo, retesou-se de repente, soltou um grito abafado,
levou a mão ao peito, pendeu para a frente, bateu com a cabeça na quina da mesa
e tombou sobre o tapete. De seus lábios escorria em golfadas uma viscosa baba
cor-de-rosa. Seu peito arfava, a respiração estertorava em roncos cavernosos.
Os olhos, estampando uma expressão de supremo assombro, estavam revirados, a
boca retorcida num ricto esquisito.
Manecão,
estarrecido, saltou da poltrona, abriu a porta que dava à sala de espera e
gritou para a enfermeira:
- Venha
depressa! Deu um negócio nele!
Quando
esta chegou, trazendo consigo, tirado às pressas da gaveta de sua mesa, um
frasquinho com minúsculos comprimidos brancos que, em vão, tentou enfiar-lhe
sob a língua, era tarde demais; o doutor estava morto...
* * * * *
Chatometria
Mario
Gentil Costa
Existem
dois tipos de chato: um é inseto; outro é humano. O primeiro causa uma doença
curável com inseticidas; o segundo é a própria doença. Ambulante. E
incurável...
O
primeiro é um artrópode da família dos pediculídeos, um ectoparasito hematófago
com habitat preferencial na região pubiana do corpo humano e que, em casos
severos, migra para outras áreas pilosas, como axilas, sobrancelhas, barba e
bigode. Seu nome científico é “Phtirius pubis”, mas, popularmente,
é chamado de “piolho-das-virilhas ou piolho-dos-soldados”. É primo-irmão do
piolho da cabeça – o Pediculus capitis. Conheci-os, ambos, nos
microscópios da cadeira de parasitologia do curso de medicina e posso afirmar
que o parentesco se justifica na semelhança que guardam entre si.
Por que
são chamados de “chatos”? Porque são inconvenientes; obrigam o portador a
coçar-se o tempo todo, mesmo nos ambientes e momentos mais inadequados.
Daí ter
surgido o conceito do chato-humano, origem da palavra ‘chatice’, doença de
causa desconhecida. Que nunca terá cura; seu portador, por mais que se esforce,
não escapa da sina de ser chato. Sempre. De forma inescapável. Sistemática.
Absoluta.
Existem,
acerca do chato, centenas de definições que não caberia citar aqui, sob pena de
me tornar também um chato...
Na
linguagem castiça, o chato é chamado de “Maçante, enfadonho ou cacete”. Na
linha mais vulgar, estariam “o mala, o sarna, o cricri e o
famoso ‘de galocha’”. Todos, entretanto, admitem uma infindável lista de
subdivisões, como “o morrinha etílico (que carece de descrição),
o conquistador (que vive a vangloriar-se de suas conquistas
amorosas), o confidencial (que fala ao-pé-da-orelha, com a
mão-em-concha), o tagarela (que fala, fala e nada diz), o pregador
(que vive a impor sua fé), o espetador (que cutuca as costelas do
interlocutor), o chafariz (que cospe e respinga ao falar), o prestativo
(sempre pronto a ajudar, mesmo quando não é solicitado), o anedótico
(de cujas piadas ninguém consegue rir), o chato-paciente
(que só os médicos conhecem). E, por fim, o chato-de-largo-espectro,
que não é nada disso, mas é chato.
Caro(a)
leitor(a), como você, convivo com alguns chatos. Faz parte dos deveres sociais.
Mas tudo tem limites. Chega um ponto em que, por maior que seja a paciência,
não dá pra agüentar. Urge, então, dar o fora, sob pena de explodir e criar
constrangimentos.
Por
sorte, sou dono de um chatômetro de precisão, sensível aos mais sutis
indícios de alerta: a entonação da voz, a risadinha, a gesticulação, a
solicitude com que tira uma caspa inexistente da minha lapela ou me ajeita o nó
da gravata, a certeza com que calcula o diâmetro da minha cintura, o contorno
geral, sei lá. Em poucos instantes, faço meu diagnóstico infalível e começo a
preparar a escapada estratégica. Quando dá... Quando não dá, fazer o
quê?
O curioso
é que o chato é um lutador infatigável, contumaz, crônico, persistente, ou
seja, o chato é um forte. Tenho pra mim que ele sabe que é chato e vive fazendo
uma força danada para deixar de sê-lo, para ser aceito entre os normais. Só não
consegue porque desconhece a fórmula e quanto mais tenta, mais chato fica. E,
sem querer, vai abrindo clareiras a seu redor. Em suma, ele é um poderoso
antígeno; seu anátema, seu destino, seu fardo é criar anticorpos.
Numa
análise genérica, diria que se mede o chato por seu grau de isolamento; pela
constância com que é visto desacompanhado. O chato, em geral, vive à procura de
uma vítima. Bobeou, ele ataca. E, por uma compulsão insuperável, começa logo a
encher o saco.
Claro,
não se pode generalizar, mas um exemplo desse espécime pode ser visto pelas
ruas, correia na mão, a seguir os passos aleatórios e as paradas obrigatórias
de um cachorrinho de estimação. Itinerário, que é bom, ele nunca tem; vai de
poste-em-poste. E em nome do bom preparo físico ou da profilaxia das doenças
circulatórias, ele caminha, caminha, caminha... horas-a-fio, sempre atento à
perspectiva de grudar num conhecido que esteja desprevenido.
Certa
vez, de inopino, um chato me abordou num velório com missa-de-corpo-presente.
Não tive como escapar. Em vez de louvar as virtudes do defunto – que as tinha
em profusão – ele, após a saudação de praxe, enfileirou três perguntas
descabidas, pronunciadas alto-e-bom-som. Começou assim:
- Mario,
que prazer!
- Como
tem passado? – respondi no tom mais cauteloso, aproveitando a gravidade da
circunstância para não sorrir.
- Eu vou
bem. Muito bem. Aliás, sempre vou muito bem. Mas, a propósito, o que tu achas
da campanha do Corinthians?
- Eu não
ligo a mínima pro Corinthians – retruquei, peremptório, embora baixinho, como
obrigava o protocolo.
- Ah,
tudo bem. Então, qual é tua opinião sobre o assassinato do Kennedy? Achas que
foi o Lee Oswald mesmo?
- Mas
isso aconteceu há mais de 40 anos...
- E daí?
Até hoje persistem dúvidas...
- Ora,
por favor...
O saco
estava quase cheio, e ele voltou à carga:
- Tudo
bem, tudo bem. Então me responde: quem vai ser eleito?
Já
notaram que quase todo chato é um perguntador? Acho que sei por quê: ele
raramente tem respostas...
Pois bem.
O saco encheu, e eu o convidei a sair da igreja. Lá fora, o saco explodiu:
- Escute
aqui, Fulano, você não acha que o momento não recomenda este tipo de conversa?
Estamos num velório, cara, e não num botequim.
-
Desculpa, não fiz por mal.
- Claro.
Agora, se você me dá licença, vou voltar lá pra dentro.
- Claro,
claro. Fica à vontade.
Foi assim, com esse destempero, que me livrei desse Pthrius
pubis. Hoje ele não me aborda mais. Mesmo assim, por medida de
segurança, faço que não o vejo e passo ao largo...
* * * * *
Eleições Oabeanas
Carlos
Adauto Vieira
O
termo OABEANA/O foi criado pelo Conselheiro Federal Carlos Alberto Silveira Lenzi, lá por 1985,
quando, junto com o Sadi Lima, representávamos a Seccional Catarinense. E foi
referendado pelo saudoso Colega e Ex-Ministro da Justiça , Dr. SEABRA FAGUNDES, passando significar relação
com a Ordem dos Advogados.
Se
os gorilas de 64, houvessem feito uma correta avaliação da ORDEM, ela teria
sido, simplesmente, fechada, sem reação. Ela era governada por 1% ( Um por
cento) dos advogados inscritos, militantes ou não. E sua maior atividade era
cobrar anuidades e multas por não comparecimento às eleições da corporação.
A
prisão de notáveis advogados, que reagiram ao golpe e se puseram na defesa de
outros que haviam sido encarcerados, além de líderes sindicais, jornalistas,
escritores, músicos, artistas plásticos, levou-a assumir a luta pelos direitos humanos e democráticos,
chegando à decisão de retorno à Democracia e à Constituição.
A luta contra a ditadura nos ensinou a
importância Dela no contexto nacional.
A
Carta de 88 deu status à Advocacia,
tornando-a prerrogativa constitucional dos inscritos na OAB, ainda, mal aceita,
igualando –a à Magistratura e ao Ministério Público.
E,
com base no artigo 133 da Carta, reformou seu estatuto de 1963, em 1994,
buscando torná-lo mais abrangente e mais democrático.
Falhou
em certos pontos. Sendo a falha mais clamorosa a das eleições de três em três
anos, obrigatória, pena de multa.
O
processo eleitoral excluiu os candidatos singulares, pretendentes às diretorias
e aos conselhos, fora dos, apelidados, chapões. A diretoria, candidata nestes
chapões, ainda, elege os conselheiros como seu apêndice. Na prática, seu acessório....Assim
como os tribunais de ética.
Não
há eleição de uma diretoria e candidatos
ao Conselho de outra. Nem os candidatos podem ser avulsos, seja para
uma, seja para outro.
Diretoria
e conselho se elegem juntos e, também, com os três candidatos ao Conselho
Federal! Não sobra oposição. Tudo é situação !
Mesmo que os opositores tenham mais votos, só vão à diretoria e aos conselhos,
se estiverem integrando uma só e mesma chapa. Ou, chapão ! É, s.m.j. uma eleição antidemocrática.
Certo
existirem as chapas, até com número mínimo de candidatos, mas disputando,
pessoalmente, as vagas, a fim de não suceder o que sucede agora : um com cinco
mil votos perde para um com dois, eleito pelo chapão.
Que
conselho pode resultar desta osmose ? Um submisso, conivente. Que tribunal de
ética pode ser livre, corajoso, bom julgador,
se não foi eleito, mas nomeado ?
Embora
haja os que não se submetem, não aceitam as condenações ordenadas, mas aquela
de acordo com a sua consciência e a sua cultura jurídica. Assim, como nos conselhos.
São raridades.
Solução
?
As
mudanças são simples e podem ser as abaixo:
ARTIGO
64 – Consideram-se eleitos os candidatos integrantes das chapas registradas que
obtiverem, individualmente, a maioria dos votos válidos.
§
1º - idem à Diretoria da Caixa de Assistência e ao Tribunal de Ética e Disciplina.
§
2º - A chapa para a Subseção deve ser composta com os candidatos à Diretoria, à Caixa de Assistência, ao
Conselho Municipal – onde houver – e
ao TED Subseccional.
Estatuto.
Lei 8906/94 .
Estas
são as mudanças mais urgentes. Já para as próximas eleições, no ano vindouro.Pena
de argüição de inconstitucionalidade do processo eleitoral em juízo.
A autor é jornalista, escritor
e advogado
OABSC 252-Ex-Conselheiro
Federal
* * * * *
A sacralidade
do vinho
Edson Nelson Ubaldo
A Quaresma, no mundo cristão, é o período sombrio que
antecede a Paixão de Jesus, mas também o tempo de preparação para a
ressurreição do Redentor no Domingo de Páscoa, com os sinos a bimbalhar no
anúncio de uma nova era, marcada pelo perdão, pela alegria e pela paz. O vinho,
ao lado do peixe e do pão, é parte indissociável dos momentos mais importantes
da passagem de Cristo pela Terra. Os peixes se multiplicaram quando seus
seguidores sentiram fome; o pão fez parte de todas as suas refeições, mas o
vinho desempenhou um papel destacado.
Nas bodas de Caná, em que o anfitrião calculou mal a
quantidade e os convidados reclamaram, Cristo salvou a festa transformando a
água em vinho. Mas já naquele tempo, à semelhança dos dias atuais, mesmo
comendo e bebendo de graça, os convivas nunca estavam satisfeitos. Não deixaram
por menos: “o que é isso, Caná, o costume é servir primeiro o melhor vinho, mas
tu o guardaste para o fim, quando o pessoal já está de cara cheia?”
Na Última Ceia Cristo reparte o pão com seus discípulos, como
símbolo do seu próprio corpo distribuído a toda a humanidade, para que esta se
impregne de novas forças e novas ideias de solidariedade, fraternidade e
tolerância. Em seguida oferece o vinho, que sem dúvida era tinto: “tomai e
bebei, pois este é o meu sangue.” Pede que continuem a compartir as duas
espécies: “fazei isto em memória de mim”. Por isso a Igreja Católica perpetua o
gesto na cerimônia da missa - a romana somente com o pão em forma de hóstia e a
ortodoxa com o pão e o vinho, mais fiel, portanto, à origem do ritual.
Ao eleger o vinho como sendo o seu próprio sangue, Cristo
consagrou-o como o símbolo máximo da vida, da continuidade de seus ensinamentos
e do início de uma nova era para a humanidade. O sangue, por certo, é o grande
elemento da vida, que circula por todo o corpo, oxigenando e mantendo vivas as
células. Uma grande honra, pois, para o suco fermentado da uva! A ciência
botânica, coerente com esse princípio, classifica a videira como Vitis, ou seja, vida. A pobre maçã, contudo, por força das travessuras de uma moçoila
assanhada chamada Eva – que vivia na Vila Paraíso com um rapazote meio ingênuo,
de nome Adão - foi injustiçada com a denominação de Mallus, cuja tradução é mal.
Cristo não foi o primeiro a dar ao vinho um caráter
sacramental. A importância de sua iniciativa está no fato de que, há mais de
dois mil anos, a consagração iniciada na Última Ceia se repete milhares de
vezes todos os dias, durante as missas celebradas ao redor da Terra. Vale a
pena imaginar quantos litros de vinho são consumidos por ano nesse importante
ritual eclesiástico! Com efeito, o uso do vinho como oferenda aos deuses,
conforme comprovam as descobertas arqueológicas, existiu entre sumérios,
babilônios, hititas (persas), egípcios, gregos e romanos. Estes dois últimos
povos criaram deuses e festas especiais em homenagem ao vinho. Os gregos
veneravam Dyonisos e celebravam festas próprias, como as dionisíacas e as
eleusinas. Os romanos adoravam Baco e divertiam-se nas bacanais, que na época
não tinham o sentido pejorativo de hoje. Tais celebrações estavam ligadas aos
ritos da fertilidade e quando os convivas passavam da conta aconteciam
previsíveis excessos de liberdade nos costumes. O cristianismo, a partir de uma
nova ótica moral, execrou as bacanais e impôs sua proibição quando o Imperador
Constantino, no ano 312, adotou a nova crença como religião oficial do estado.
Por isso as bacanais viraram sinônimo de orgias, até porque, na realidade, de
um ponto em diante deviam ser exatamente isso.
Mais tarde outras crenças e sociedades filosóficas
introduziram o vinho em seus rituais. O Candomblé nacional recomenda que os
"filhos" de Xangô ofereçam semanalmente uma taça de vinho branco a
esse orixá, enquanto a Umbanda – versão sincrética mais popular - prefere o “marafo” (cachaça). A Maçonaria, no final do
ritual de iniciação ao Grau 14 do Rito Escocês Antigo e Aceito, utiliza uma
taça de vinho tinto da qual todos os participantes tomam um gole, significando
união e fraternidade. A taça é quebrada ao término da sessão, para que nenhum
profano dela possa se servir. Tal gesto simboliza a renovação do compromisso de
silêncio e respeito mútuo dos iniciados.
Enfim, qual o motivo que emprestou ao vinho, ao lado do pão,
essa aura de sacralidade? A resposta é simples: ambos foram os primeiros
produtos alimentícios elaborados pelo homem, antes somente caçador e coletor. O
cultivo da vinha e do trigo marca o início do sedentarismo. O homem deixa de
ser nômade e constrói as primeiras aldeias. Como a sobrevivência dependia do
cultivo e este se sujeitava aos caprichos do clima, era preciso fazer oferendas
aos deuses para que estes permitissem boas colheitas. Nada mais natural,
portanto, do que oferecer-lhes os próprios produtos almejados. Por outro lado,
o pão é sólido e representa o corpo. O vinho, por ser líquido e
vermelho,assemelha-se ao sangue. Ou seja, os dois elementos são símbolos
perfeitos da própria vida.
Cristo, mais que todos, soube sintetizar e eternizar essa
maravilhosa simbologia. Por isso, quando se celebra a sua Ressurreição, nada
mais adequado do que mastigar um pedaço de pão e sorver uma taça de vinho, ao
mesmo tempo em que cada um de nós se permita alguns momentos de reflexão e
verifique se de fato tem seguido os ensinamentos de paz, fraternidade,
solidariedade, compreensão, perdão, tolerância e caridade para com os próprios
semelhantes, conforme traçados pelo Homem de Nazaré.
O autor é desembargador
aposentado
O COLISEU
Mario
Gentil Costa
Um guia
turístico tanto pode ser uma pessoa como um papel impresso.
Se
impresso, será certamente um folheto explicativo com explicações sobre a
história, a geografia, a economia, a cultura e os costumes de um determinado
povo ou região, e que dê respostas imediatas ao turista, ensinando-lhe aonde ir
e o que buscar.
Se
pessoa, deve estar, em matéria de conhecimento, acima do segundo caso, isto é,
não pode parecer um mero folheto ambulante, como alguns que existem aqui em
Floripa.
Vítima -
que às vezes não consigo deixar de ser - do nosso atávico complexo de
inferioridade tupiniquim, qual não foi minha surpresa quando, num papo variado
e agradável com um prezado amigo e colega, que, na ocasião, recém-vinha de uma
excursão pela Europa, onde, entre muitas atrações, visitara o Coliseu, foi-me
posta esta questão:
- Mario,
tu sabias que o Coliseu nunca foi palco de matanças?
- Quem te
disse isso?
- Meu
guia turístico...
- Gente
ou livro?
- Não
entendi - confessou, indeciso.
- Guia
turístico gente ou guia turístico livro? - corrigi.
- Ah,
sim. Um homem. Disse que tudo não passa de balela; que o Coliseu era apenas um
grande circo para divertir o povão.
- Pois
ele errou. Ali foram sacrificados não apenas cristãos e criminosos, mas também
judeus...
- Tás
brincando! Quem te disse?
- Li. Em
livros que esse guia nunca leu...
- Então,
vamos saber se tu leste mesmo: qual é o verdadeiro nome do Coliseu? O original...?
-
Anfiteatro Flaviano – respondi e emendei: - Agora, deixa-me dizer algo mais
para justificar minha afirmação anterior: o Coliseu, erigido por Tito no início
da Era Cristã, foi construído com mão-de-obra escrava. Esse “imperador” trouxe
de Jerusalém, que acabara de conquistar e devastar por volta do ano 70 d.C.,
12.000 escravos judeus. Foram eles que construíram o Coliseu. E, no dia da
inauguração, cerca de 10.000 desses trabalhadores foram, diante de toda a corte
romana e da plebe que lotava a arena, atirados aos leões para “abrilhantar
as festividades”. Depois, seus corpos dilacerados foram arrastados por uma
abertura no fundo da arena, chamada “porta da morte”. Por causa disso,
até hoje, em atitude de protesto contra essa chacina histórica, muitos judeus
eruditos, quando fazem turismo em Roma, não visitam o Coliseu. E cristãos
também foram mortos ali, sim, porque eram vistos como subversivos que ameaçavam
a estabilidade do regime, até que o Imperador Constantino, convertido ao
Cristianismo após um delírio esquizofrênico em que avistou uma cruz no céu,
suspendeu as execuções no século IV. Daí em diante, eram sacrificados apenas os
escravos rebeldes, os criminosos e os condenados da justiça.
- E por
que o guia teria omitido tudo isso? - indagou o amigo, perplexo.
- Porque
ignorava. Ou, talvez, tivesse sido orientado nesse sentido por forças ocultas,
com o objetivo de diminuir o mérito desses mártires. Afinal, judeus sempre
tiveram seus inimigos e detratores...
Afastando
de cima dos olhos seu vasto e rebelde topete – que faz inveja a muito careca
que eu conheço – meu amigo, com o olhar perdido no horizonte, relembrou:
- Uma
outra coisa que ele disse é que ninguém sabe por que o povo chama aquilo de
Coliseu.
- Outro
detalhe que ele também deveria conhecer. “Coliseu” vem do latim; quer dizer “colossal”.
O termo original era “colosseus”. O tempo encarregou-se de
transformá-lo. Os italianos dizem “coliseo”.
De fato,
nem eu nem o amigo tínhamos obrigação de saber desses detalhes. Mas o guia
turístico, que não era tupiniquim, esse tinha!...
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